Levar uma biografia às telas de cinema é sempre uma tarefa delicada. Quando se trata de uma personalidade popular, as expectativas do público tornam-se ainda maiores e, muitas vezes, o resultado fica aquém do esperado. Sabendo disso, Carolina Kotscho, responsável pelo roteiro do sucesso “2 Filhos de Francisco” (2005), tinha certeza do enorme desafio que seria retratar a história de Hebe Camargo, um dos maiores ícones da televisão brasileira, em um longa-metragem.

A roteirista resolveu deixar de lado o recurso habitual de resumir a vida do biografado do início ao fim e preferiu fazer um recorte específico da vida da apresentadora. No caso, optou pela década de 80, quando Hebe adotou uma postura mais politizada num momento em que o Brasil, com o enfraquecimento do regime militar, caminhava rumo à democracia.

Carolina pesquisou a fundo toda a vida da dama da TV, tendo como uma de suas principais fontes Leonor Teixeira, uma fã de 95 anos que possui o maior acervo de matérias sobre ela. E mesmo sem abordar sua infância pobre, a carreira musical e o pioneirismo na televisão, “Hebe – A Estrela do Brasil” consegue transmitir de forma eficiente ao espectador a forte personalidade de Hebe Camargo e o quanto ela foi uma mulher à frente do seu tempo.

NEM DIREITA, NEM ESQUERDA: DIRETA!”

O enredo tem início quando Hebe (Andréa Beltrão), chegando aos 60 anos de idade e com quatro décadas de uma carreira consolidada, decide usar a sua influência para defender publicamente os homossexuais, as mulheres, os aposentados e excluídos em seu programa.

A tentativa de controle por parte da censura federal acaba levando-a a bater de frente com Walter Clark (Danilo Grangheia), então diretor-geral da Rede Bandeirantes, que exige que a atração passe a ser gravada. Hebe recusa e, num gesto de protesto, joga o microfone ao chão, rompendo com a emissora ao vivo.

Pouco tempo depois, aceita o convite de Silvio Santos (Daniel Boaventura) para assinar contrato com o SBT, ganhando liberdade total para fazer o programa do seu jeito. Tal liberdade se torna um enorme problema, quando Hebe começa a criticar os políticos corruptos e suas regalias em rede nacional.

Com a enorme repercussão de suas declarações, ao mesmo tempo em que sofre pressões e ameaças, Hebe é requisitada para conceder entrevistas que se tornaram históricas, como no programa Roda Viva e na revista Playboy. Se Hebe Camargo passou 40 anos fazendo perguntas, desta vez, os brasileiros queriam ouvir o que ela tinha a dizer.

DETALHES DE UMA VIDA, HISTÓRIAS QUE EU CONTEI AQUI”

Sem a menor dúvida, o grande trunfo de “Hebe – A Estrela do Brasil” atende pelo nome de Andrea Beltrão. Para interpretar o que talvez seja o papel mais complexo de sua carreira, a atriz se preparou durante 1 ano e meio, lendo e assistindo tudo o que havia disponível sobre a apresentadora.

Dirigida por Maurício Farias, com quem é casada há 25 anos, Andrea compensou a falta de semelhança física com sua personagem estudando a fundo os seus gestos e modo de falar, construindo a sua própria Hebe. Ela surge na tela exagerada e extrovertida como a verdadeira, mas sem apelar para a caricatura. Uma performance arrebatadora que confirma, mais uma vez, que Andrea Beltrão é uma das maiores atrizes do Brasil.

Impossível não se emocionar com o seu desempenho nas cenas que mostram a relação de Hebe com um de seus melhores amigos, o maquiador e cabeleireiro Carluxo (Ivo Müller). Após a sua morte devido a complicações causadas pela Aids, um programa é dedicado em sua homenagem. A pedido da apresentadora, todos os presentes no estúdio se levantam para uma oração, exceto um padre convidado, que permanece sentado, deixando-a perplexa. Vale lembrar que Hebe foi a primeira apresentadora a discutir abertamente sobre a Aids em horário nobre, levando para o seu famoso sofá temas sérios considerados tabus na época.

Outro grande momento é a participação de Roberto Carlos (interpretado por Felipe Rocha) no programa de Hebe. Ao surgir no palco cantando “Emoções”, faz a apresentadora, que nunca escondeu sua paixão pelo cantor, desabar em lágrimas. A própria Andrea Beltrão declarou ter se emocionado ao gravar a cena, escrita sob licença poética, já que Roberto nunca pôde estar presente no programa da amiga. Devido a seu contrato de exclusividade com a TV Globo, o cantor chegou a ser entrevistado por Hebe apenas em duas ocasiões, em 1988 e 2010, mas fora dos estúdios do SBT.

Demais liberdades criativas foram tomadas em relação à história como, por exemplo, a participação de Roberta Close no antológico programa em que Dercy Gonçalves exibiu os seios ao vivo, chocando os telespectadores. Embora tenha sido entrevistada por Hebe em outra ocasião, Roberta não esteve presente neste dia específico. No filme, a modelo (interpretada por Renata Bastos, bastante caricata) responde a perguntas sobre sua transexualidade.

VIDA PESSOAL E CONTROVÉRSIAS

Hebe – A Estrela do Brasil” também aborda a vida íntima da apresentadora, como o turbulento casamento com Lélio Ravagnani, seu segundo marido. Marco Ricca está excelente no papel do empresário machista e ciumento, cujo comportamento agressivo cresce ao longo da narrativa, culminando em agressões físicas contra Hebe. O casal chegou a se separar após 10 anos de união, mas acabaram reatando e permaneceram juntos até a morte de Lélio, em 2000.

O roteiro exagera ao dar espaço mais que necessário para o filho de Hebe, Marcello (Caio Horowicz), cuja homossexualidade é sugerida, mas não diretamente confirmada. A dificuldade de se relacionar com o pai, Décio (Gabriel Braga Nunes) e os conflitos com o padrasto são mostrados, assim como a rebeldia do adolescente que, para desafiá-lo, promove festas com os empregados da casa. Curiosamente, tal proximidade com os funcionários foi negada pelo próprio Marcello após a pré-estreia do filme.

Por outro lado, a forte e duradoura amizade entre Hebe, Nair Bello e Lolita Rodrigues poderia ter sido melhor explorada. As atrizes são vividas, respectivamente, por Karine Telles e Claudia Missura, em uma única e divertidíssima cena. Inclusive, é nesse momento que Hebe deixa claro o motivo de sua resistência em trabalhar na TV Globo, temendo repreensões por parte da emissora.

Embora, em grande parte da narrativa, a apresentadora pareça ter sido retratada de forma bastante idealizada, o filme não chega a ser uma biografia chapa branca. É citado, por exemplo, o seu contraditório apoio a Paulo Maluf em sua candidatura como governador de São Paulo. O político teve sua carreira marcada por inúmeras acusações de corrupção e chegou a participar diversas vezes do programa de Hebe.

CINEBIOGRAFIA À ALTURA DE UMA ESTRELA

Tecnicamente impecável, “Hebe – A Estrela do Brasil” conta uma direção acertada de Maurício Farias, somada à belíssima fotografia de Inti Briones e competente montagem de Joana Collier e Fernanda Franke Krumel (premiada no Festival de Gramado), que confere dinamismo à narrativa mesmo com o ato final um pouco arrastado.

O figurino assinado por Antonio Medeiros salta aos olhos, com parte das peças pertencentes ao acervo da própria Hebe Camargo, incluindo os sapatos. Tais peças foram cedidas pelo sobrinho e ex-empresário de Hebe, Claudio Pessutti, considerado um filho pela apresentadora.

Interpretado no filme por Danton Mello, Claudio fez questão que até as joias usadas por Andrea Beltrão fossem verdadeiras. Como nenhuma seguradora aceitou cobrir o alto valor das pedras preciosas, elas tiveram que ser dadas como falsas pela produção, a fim de evitar possíveis furtos durante as filmagens.

Um dos grandes filmes brasileiros do ano, “Hebe – A Estrela do Brasil” é uma bela homenagem à altura de uma das maiores comunicadoras que o país já teve, e que ainda será merecidamente celebrada em outras produções para o ano que vem.

Em janeiro, a TV Globo exibirá uma minissérie em dez capítulos com material estendido do filme. Também está previsto o lançamento de um documentário dirigido por Carolina Kotscho, que entrevistou cerca de 40 pessoas que conviveram com a apresentadora.

Hebe merece! Não só por ter sido pioneira na história da nossa televisão, mas também por ousar tocar em temas tão importantes numa época em que não se podia falar, ainda mais sendo mulher. Assuntos, inclusive, cada vez mais pertinentes em nossa sociedade.

É mais do que justo e oportuno, num momento em que a censura volta a assombrar o Brasil, que Hebe Camargo seja lembrada como um símbolo da luta pela liberdade de expressão. Afinal de contas, como o próprio slogan do filme diz, “uma verdadeira estrela não precisa de permissão para brilhar.”

‘Love Lies Bleeding’: estilo A24 sacrifica boas premissas

Algo cheira mal em “Love Lies Bleeding” e é difícil articular o quê. Não é o cheiro das privadas entupidas que Lou (Kristen Stewart) precisa consertar, nem da atmosfera maciça de suor acre que toma conta da academia que gerencia. É, antes, o cheiro de um estúdio (e...

‘Ghostbusters: Apocalipse de Gelo’: apelo a nostalgia produz aventura burocrática

O primeiro “Os Caça-Fantasmas” é até hoje visto como uma referência na cultura pop. Na minha concepção a reputação de fenômeno cultural que marcou gerações (a qual incluo a minha) se dá mais pelos personagens carismáticos compostos por um dos melhores trio de comédia...

‘Guerra Civil’: um filme sem saber o que dizer  

Todos nós gostamos do Wagner Moura (e seu novo bigode); todos nós gostamos de Kirsten Dunst; e todos nós adoraríamos testemunhar a derrocada dos EUA. Por que então “Guerra Civil” é um saco?  A culpa, claro, é do diretor. Agora, é importante esclarecer que Alex Garland...

‘Matador de Aluguel’: Jake Gyllenhaal salva filme do nocaute técnico

Para uma parte da cinefilia, os remakes são considerados o suprassumo do que existe de pior no mundo cinematográfico. Pessoalmente não sou contra e até compreendo que servem para os estúdios reduzirem os riscos financeiros. Por outro lado, eles deixam o capital...

‘Origin’: narrativa forte em contraste com conceitos acadêmicos

“Origin” toca em dois pontos que me tangenciam: pesquisa acadêmica e a questão de raça. Ava Duvernay, que assina direção e o roteiro, é uma cineasta ambiciosa, rigorosa e que não deixa de ser didática em seus projetos. Entendo que ela toma esse caminho porque discutir...

‘Instinto Materno”: thriller sem brilho joga no seguro

Enquanto a projeção de “Instinto Materno” se desenrolava na sessão de 21h25 de uma segunda-feira na Tijuca, a mente se esforçava para lembrar da trama de “Uma Família Feliz”, visto há menos de sete dias. Os detalhes das reviravoltas rocambolescas já ficaram para trás....

‘Caminhos Tortos’: o cinema pós-Podres de Ricos

Cravar que momento x ou y foi divisor de águas na história do cinema parece um convite à hipérbole. Quando esse acontecimento tem menos de uma década, soa precoce demais. Mas talvez não seja um exagero dizer que Podres de Ricos (2018), de Jon M. Chu, mudou alguma...

‘Saudosa Maloca’: divertida crônica social sobre um artista boêmio

Não deixa de ser interessante que neste início da sua carreira como diretor, Pedro Serrano tenha estabelecido um forte laço afetivo com o icônico sambista paulista, Adoniram Barbosa. Afinal, o sambista deixou a sua marca no samba nacional dos anos 1950 e 1960 ao...

‘Godzilla e Kong – O Novo Império’: clima de fim de feira em filme nada inspirado

No momento em que escrevo esta crítica, caro leitor, ainda não consegui ver Godzilla Minus One, a produção japonesa recente com o monstro mais icônico do cinema, que foi aclamada e até ganhou o Oscar de efeitos visuais. Mas assisti a este Godzilla e Kong: O Novo...

‘Uma Família Feliz’: suspense à procura de ideias firmes

José Eduardo Belmonte ataca novamente. Depois do detetivesco – e fraco – "As Verdades", ele segue se enveredando pelas artimanhas do cinema de gênero – desta vez, o thriller domiciliar.  A trama de "Uma Família Feliz" – dolorosamente óbvio na ironia do seu título –...