Em 2004, o universo de super-heróis vivia um bom momento – ainda que distante da febre comercial que assola o planejamento atual cinematográfico – com os estúdios mais ousados na contratação de cineastas de personalidade forte para dirigirem os seus filmes. Foi nesta pegada que Byran Singer (X-Men Apocalipse), Sam Raimi (Homem-Aranha 1 e 2) e Ang Lee (Hulk), deram um escopo bacana a jornada dos super-heróis, em um mundo onde o Universo Marvel não existia para ditar as regras e fórmulas do sistema de filmes, abrindo espaço para as chamadas “liberdades criativas”.

Diferente dos amigos que apostaram as suas fichas em heróis de conhecimento público, Guillermo Del Toro, um cineasta afeito ao mundo fantástico de criaturas marginalizadas, resolveu investir em Hellboy, o demônio vermelho idealizado por Mike Mignola através do selo de quadrinhos Dark Horse. Pessoalmente, gosto das duas adaptações realizadas pelo cineasta mexicano, principalmente a sua continuação Exército Dourado, ainda que concorde com os fãs mais exigentes que alegam que os filmes são muito mais adaptações da visão do diretor do que fiéis aos quadrinhos de Mignola. O mexicano merece crédito por criar um universo fantástico sólido e cativante no cinema em relação ao Hellboy, ainda que tenha diminuído demais o caráter macabro e violento das HQs em favor da romantização do herói.

Infelizmente, a redução de custos da produção de um terceiro e o retorno financeiro modesto dos filmes anteriores (longe do lucro esperado para filmes de super-heróis) levou a saída do cineasta e do seu principal intérprete (o ótimo Ron Perlman), com o estúdio tomando a decisão de fazer um reboot do vermelhão, iniciando tudo do zero. Vivido agora por David Harbour (o Xerife Jim Hopper de Stranger Things), Hellboy precisa no novo filme enfrentar a Rainha de Sangue, a bruxa Nimue (Milla Jovovich) para impedi-la de exterminar a vida na Terra (sim, o puro clichê do clichê no filme de super-herói). Para executar a missão, a criatura infernal conta com o apoio do seu professor/pai Trevor Bruttenholm (Ian McShane) líder da equipe do Bureau de Pesquisa e Defesa Paranormal (BPDP) que ainda traz a jovem Alice (Sasha Lane), personagem relacionada ao passado do herói, e Ben Daimio (Daniel Dae Kim), um agente de campo de passado obscuro que entra em atrito com Hellboy.

Uma Jornada do herói aborrecida

Se de um lado, a nova versão cinematográfica de Hellboy se aproxima mais das excentricidades e da violência gráfica do impecável universo de mitos e lendas dos quadrinhos de Mignola, pelo outro, ela é extremamente problemática. Somos apresentados a uma narrativa bagunçada que nunca encontra o ritmo adequado para apresentar a jornada do herói. A própria história é desestruturada, marcada por personagens rasos (saudades de Liz Sherman e Abe Sapiens da saga original) e uma enorme falta de cuidado em estabelecer as dinâmicas entre eles.

O conflito emocional interno de Hellboy entre confrontar a sua própria natureza ambígua – o herói encantador e a horrenda personificação da besta demoníaca – acaba marcado por situações desinteressantes. Sua relação com o professor Trevor que nos filmes de Del Toro era um dos alicerces emocionais primordiais para o seu funcionamento, aqui, se perde em frases de efeitos e diálogos vazios que apenas reproduzem uma relação aborrecida entre um pai e um filho adolescente em crise, sem grandes consistências dramáticas. Neste aspecto, falta a nova versão transmitir a intensidade da paixão desta realidade fantástica que o trabalho de Mignola representa.

Pegada Trash

Não seria injusto dizer que este reboot tem a cara das produções baratas feitas diretamente para serem lançadas na TV ou em home-video: montagem desordenada, roteiro acelerado demais e alguns efeitos especiais precários – principalmente no combate final, onde os efeitos parecem ter sido finalizados nas coxas. A impressão é que tanto o diretor Neil Marshall e o roteirista Andrew Cosby tem total consciência da atmosfera aterrorizante, habitada por gigantes, bruxas e fadas dos quadrinhos de Mike Mignola, contudo, as ideias de ambos clamam por uma realidade financeira melhor para serem colocadas em prática.

Fica nítido que “Hellboy” investiu grande parte dos seus recursos nos efeitos visuais do design das criaturas. A composição visual delas rendem momentos interessantíssimos como toda a sequência aterrorizante relacionada à bruxa russa Baba Yaga e a luta frenética de Hellboy contra os gigantes – filmado em um divertido plano-sequência pelo diretor. Ambos momentos dignos para agradar os fãs do vermelho ou os cinéfilos que gostam de se esbaldar em duelos fantásticos.

Uma pena que fora deste campo, o novo Hellboy é uma aventura fantástica pobre, barulhenta e gratuitamente violenta, com uma pegada trash – não no sentido de diversão que um filme B proporciona – que expõe a preguiça criativa do material. Os mais antigos – como eu – lembram-se de Superman IV – Em Busca da Paz, de Sidney J.Furie, Robocop 3, de Fred Dekker e Batman & Robin, de Joel Schumacher, todas produções com este mesmo tipo de pegada bizarra e que acabaram por enterrar no limbo cinematográfico, por vários anos, suas respectivas franquias. O novo Hellboy deixa claro que o demônio vermelho hibernará por bons anos para tristeza dos fãs.

Um elefante branco na sala

O novo filme revela a visão tacanha do estúdio e dos seus envolvidos de que o conceito ultrapassado do bom, bonito e barato sempre dá certo. Não é o caso aqui. Sai toda a sistematização de contos de fadas de Del Toro – criticada por alguns pelo tom infantilizado – para introduzir o exagero visceral de Marshall. Na questão da violência e quantidade de sangue, o novo filme é realmente bem fiel aos quadrinhos. Temos situações cartunescas – a sequência no México respira isso – e irônicas que, apesarem de refletirem o humor cínico do personagem, soam desacertadas por não encontrarem o timing ideal entre a comédia e a veia pop que a produção se propõe, alinhando a trilha sonora rock and roll com a montagem frenética moderna. Há uma tentativa de transformar o diabo vermelho em uma versão sobrenatural de Deadpool para angariar o público mais jovem, porém, todo o encadeamento narrativo não logra êxito, afinal o humor e a concepção de personagem existem apenas gratuitamente.

O roteiro de Cosby tenta administrar uma colcha de retalhos que é adaptar um arco tão grande nos quadrinhos de Hellboy – há referências da saga Clamor das Trevas e Tormenta e Fúria – que praticamente transforma cada segmento do filme em uma fase de um jogo de videogames, com personagens e conflitos sendo introduzidos incessantemente, para logo depois serem esquecidos à medida que a missão principal da fase, se completa. Isso reflete em problemas sérios no ritmo da narrativa, pela falta de foco na sua unidade fílmica em criar um elo entre as diferentes histórias. Isso proporciona ao espectador um sentimento de estar assistindo um elefante branco andado de um lado para outro numa sala de cristais.

É uma pena que dentro deste caos cinematográfico, a atuação dedicada de David Harbour – bem mais politicamente incorreta que a intepretação ícone de Ron Perlman no original – fique perdida. O ator funciona muito bem e mesmo mergulhado em uma pesada maquiagem estabelece um ótimo carisma e personalidade ao personagem dentro do conflito dramático estabelecido. Sem contar que Harbour realmente parece à vontade e se divertindo como Hellboy. E se nos filmes de Del Toro, o arco vilanesco sempre foi um dos maiores defeitos, no reboot a bruxa de Mila Jovovich mantém a tradição, sendo a vilã, uma das piores coisas da produção.  Pelo menos a atriz, mantém a coerência dentro da sua filmografia, de protagonizar filmes ruins, através de performances artificialmente miseráveis.

O fato é que este reboot de Hellboy carece de amor à causa. Tiraram quem entendia do riscado, aquele que amava, compreendia e dominava a essência dos seus personagens, criaturas e universo, para “terceirizar” o serviço com pessoas sem qualquer “feeling” para o negócio – é triste ver Marshall, um diretor que se destacou no cinema de terror com filmes cerebrais no horror psicológico como Abismo do Medo e obras pulps sangrentas do cinema B como Centurião e Doomsday metendo os pés pelas mãos – com a justificativa de fazer um filme sobre o personagem “para adultos”, enquanto no fundo, o resultado final é um filme imaturo, apressado e sem qualquer imaginação. Se juntar Hellboy 2019 com Esquadrão Suicida já temos a versão de Juntos e Shallow Now do mundo dos super-heróis.