Foi com surpresa e satisfação que recebi a notícia da seleção do Tempo Passa na quadragésima edição do Guarnicê. Já ouvira falar muito bem deste festival. É um dos mais antigos do Brasil, e recentemente teve a participação do curta amazonense Até Que A Última Luz se Apague, que premiou Arnaldo Barreto como melhor ator.

A surpresa se deu, principalmente, pelo fato do filme ter uma longa duração para um curta-metragem: 24 minutos cobram um preço alto. Admito que não tinha uma noção clara disso quando terminamos a montagem. Curtas com mais de 15 minutos precisam ter uma voz diferenciada para passar em festivais importantes. Mais de 20 então, fica quase impossível. Provavelmente o trabalho despertou a curiosidade da curadoria pelo seu naturalismo, e pela maneira como se dedicou a mostrar o bairro da Compensa, pensei. Curadores de festival adoram ver imagens de locais que não conhecem.

Outro possível ponto seriam as cenas de violência. De repente poderiam ter achado o filme corajoso e resolveram incluí-lo na mostra nacional como uma maneira de tornar o festival mais abrangente com relação às temáticas abordadas. O que certamente colocaria o trabalho como um extremo do festival. Isso me fez pensar que era possível, provável até, que o filme receberia críticas duríssimas do público e dos demais membros da mostra.

O Tempo Passa, de Diego Bauer

Considero absolutamente legítimos os questionamentos e críticas a maneira como mostro a violência neste trabalho. De fato é um filme desagradável, que confronta. E em um momento tão sensível e problematizador em relação a como são abordadas as minorias, certamente há interpretações bastante negativas ao filme, as quais já ouvi e entreouvi. Somando tudo, considero o filme viável.

Por mais que ache que é de suma importância este momento de excesso de contestação, afinal é só assim que se avança nestas questões que são fundamentais, creio que o diálogo artístico quase não acontece no momento no Brasil. Parece existir apenas dois tipos de abordagens possíveis: a correta e a opressora. Não existem camadas de cinza. Mas isso é assunto pra outro texto. Sigo feliz e satisfeito com o papel que me cabe – e aqui ressalto que não há nenhuma ironia no que digo – que é o de ficar calado e tentar cada vez mais não deslegitimar a luta de ninguém.

O Tempo Passa foi o primeiro filme da primeira sessão da mostra competitiva nacional a ser exibido. Não conhecia o perfil do público, então a imprevisibilidade da exibição era absoluta. Mas não houve vaias. Apenas uma recepção morna do público, com aplausos desentusiasmados ao final. Na conversa com os demais colegas realizadores após a sessão, era unânime a ideia de que o que o filme tem de melhor é a apresentação do local e aquelas relações cotidianas, e que a partir do primeiro estupro a violência na tela se torna excessiva, e o arco dramático dos personagens, problemático. Não há como negar, estão corretos.

Passada a adrenalina da exibição, o Guarnicê se mostrou como uma experiência excelente para um cinéfilo. Já sabia disso antes de chegar, mas lá estando constatei que a seleção da mostra competitiva nacional de curtas-metragens era muito boa e abrangente.

Na mesma sessão que a minha foram exibidos dois filmes que gostei muito. O vencedor do festival É Tudo Verdade de 2016, Abissal, de Arthur Leite e A Nova Melancolia, de Álvaro Andrade Alves e Marcus Curvelo, uma proposta audiovisual híbrida muito bem humorada. O Tempo Passa acabou eclipsando estes dois trabalhos. Não por ser melhor que eles, pois não é, mas pelo fato da sua temática e abordagem causarem mais discussão do que o cinema pessoal/autoral de ambos. Detalhes como esse possuem papel importante em festivais, ainda mais com filmes tão discrepantes.

O filme que mais me agradou foi Boa Noite, Charles, dos Irmãos Carvalho. O que caminhava pra ser um trabalho espertinho sobre o making of de um filme que não deu certo, revela-se como um curta muito criativo, e habilidoso ao saber explorar as precariedades que estão inevitavelmente ligadas a se fazer uma animação de baixíssimo orçamento.

Nos curtas mais experimentais, destaco o interessante trabalho de montagem de Confidente, de Karen Akerman e Miguel Seabra Lopes, e a sensorialidade aguçada de As Ondas, de Juliano Gomes e Léo Bittencourt. Luíza, de Caio Baú, também se destacou pela temática, ao apresentar o cotidiano da personagem título, uma jovem deficiente mental, iniciando a sua vida sexual com o primeiro namorado.

Mas quem realmente atraiu a maior atenção foi o multi premiado Demônia – Melodrama em 3 Atos, de Cainan Baladez e Fernanda Chicolet. Ao todo foram 7 prêmios: filme, direção, roteiro, ator, atriz, ator coadjuvante e trilha sonora. A produção inspira-se em um vídeo viralizado no Youtube (Socorro Feirante), e dramatiza a situação de uma mulher traída pelo marido e um amigo dele em 3 momentos: a descoberta da traição; o confronto durante uma reportagem de um programa sensacionalista; e depois toda aquela história transformada em um vídeo de Youtube repleto de gifs, montagens afetadas e sucessão de memes. De fato é um trabalho muito bem realizado, com proposta audiovisual interessante, desenvolvida com personalidade e segurança, apesar de todos os enormes riscos do filme descambar pra uma piada rasteira. Mas ao dar 7 prêmios para apenas um filme, o júri claramente sinaliza: este trabalho é muito superior aos demais, a ponto de ser impossível dividir os prêmios sem que o nível seja mantido.

Acho plausível Demônia dominar os principais prêmios, mas com certeza mais filmes tinham condições de receber destaque.

O mesmo não posso dizer da mostra de longas-metragens. Todas as obras participantes vieram de estados da região norte e nordeste. Pará, Bahia, Paraíba, Ceará, Maranhão e Pernambuco. Entendo e acho fundamental que estes filmes participem do Guarnicê, que os seus realizadores adquiram esta experiência. Mas era nítido o desequilíbrio entre as mostras de longas e curtas. Não houve um filme que despertasse real interesse, que apresentasse propostas audiovisuais inovadoras, instigantes, promissoras. Isso veio dos curtas.

Quem cumpriu papel positivo foram os bons filmes Fala Comigo, de Felipe Sholl; Comeback, de Érico Rassi; e Divinas Divas, de Leandra Leal. Todos fora de competição.

Mas exigir “coerência” em festivais é uma demanda infindável e inócua. O Guarnicê valeu mesmo pela inestimável troca com todos esses realizadores. É apenas em situações como essas que você consegue realmente ver o papel que o seu filme desempenha, e como ele está posicionado perante filmes que tiveram trajetórias nos mais importantes festivais do Brasil. Aliás, não só o filme, mas você como diretor é fortemente confrontado ao ver que tem gente mais ou menos com a mesma idade que a sua (alguns até mais novos, como ousam!?) com ideias mais maduras e experimentadas. Hoje é impossível ver O Tempo Passa com os mesmos olhos. Ainda bem.

Já chegando no último dia, o desejo de fazer outro filme o quanto antes se tornou inevitável. Nem que seja para retornar a São Luís ano que vem e reencontrar tanta gente talentosa e criativa. Lembrei que ainda tenho uma série pra dirigir, que ela ainda não chegou nem na metade do seu caminho. Sinto-me bem. Acho que já vai dar pra colocar em prática um monte de ideias novas. Tudo isso pra daqui a algum tempo, certamente, perceber que ainda tenho muita coisa pra (re)descobrir.