Em meados de 2012, um filme adaptado de uma trilogia voltada ao público adolescente – ou seja, altamente suspeito – provou ser bem mais do que rostos bonitos num contexto de referências aleatórias a princesas, criaturas fantásticas e/ou monstros da mitologia popular.

Jogos Vorazes, o original, estava léguas à frente de seus pares pela violência incomum e a seriedade com que, de fato, tentava comunicar alguma coisa: uma crítica ao totalitarismo e à manipulação de informações pela mídia, encarnadas na protagonista Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence), líder, a contragosto, de uma rebelião em massa num futuro distópico.

Hoje, meros três anos depois, o sucesso de Jogos parece óbvio e justo, e a trilogia (esticada, como é de hábito em Hollywood, num final duplo) é uma das mais lucrativas da história recente do cinema, além de ter gerado várias imitações de menor impacto (Divergente, Maze Runner). A verdade, porém, é que o sucesso da franquia, tanto em livros quanto no cinema, foi um acontecimento inesperado, sobretudo para quem acompanhou a implosão de Harry Potter e o alastramento do esdrúxulo kitsch de Crepúsculo, que parecia ter vindo pra ficar. Chega a ser um alívio ver que a voga, no cinema voltado à molecada, são os rebeldes de Panem, não os genéricos de Bella e Edward ou do próprio Potter, as referências da década passada.

Agora, às vésperas do aguardadíssimo último capítulo, é hora de analisar o que fez de Jogos Vorazes um produto tão bem-sucedido, em vários sentidos, no mundo volátil e rarefeito das megafranquias.

Trama

Ambientada em Panem, uma versão distópica dos Estados Unidos, a série mostra a separação radical entre os ricos, concentrados numa opulenta e cafona megalópole, a Capital, e os pobres, divididos em doze distritos, que cumprem tarefas bem definidas para sustentar os privilégios da urbe. Esse estado de coisas é resultado de um grande conflito ocorrido no passado, em que um dos distritos – o 13º – foi literalmente varrido da história. Como emblema da força da Capital, é organizado, anualmente, o torneio Jogos Vorazes, no qual os distritos devem enviar jovens representantes para lutar até a morte, até que reste apenas um vencedor.

Pioneira entre as distopias adolescentes, a trama de Jogos Vorazes é a mais bem urdida e convincente entre os seus competidores diretos, Divergente e Maze Runner, além de ser bem mais densa e inteligente do que a mistura de vampiros brilhantes, lobisomens musculosos, romantismo açucarado e música indie de Crepúsculo. Não há predestinados nem heróis óbvios, e a Katniss de Jennifer Lawrence é uma mulher (distinção rara no cinema de ação) martirizada por dúvidas e sujeita a joguetes políticos, combinação improvável – e louvável – para uma superprodução de Hollywood.

Personagens e elenco

As figuras que cercam a protagonista também não fazem feio – e, com um elenco desses, nem poderiam. O parceiro de Katniss nos Jogos, Peeta Mellark, é o ótimo Josh Hutcherson, de ABC do Amor (2005) e Ponte para Terabítia (2007). O grande vilão, o chefão da Capital e de Panem, Coriolanus Snow, é ninguém menos que o grande Donald Sutherland, de M.A.S.H. (1970) e Klute – O Passado Condena (1971). E, nos papéis secundários, gente como Woody Harrelson (O Povo contra Larry Flynt, série True Detective), Julianne Moore (Para Sempre Alice, Longe do Paraíso), Philip Seymour Hoffman (Capote, O Mestre), Elizabeth Banks (Love & Mercy, Pagando Bem, que Mal Tem?), Stanley Tucci (Um Olhar do Paraíso, O Diabo Veste Prada), Wes Bentley (Beleza Americana) e até Liam (irmão de Chris) Hemsworth e o cantor Lenny Kravitz.

A maioria empresta uma substância insuspeita às figuras do romance de Collins, e faz toda – repito, toda – a diferença em relação às demais sagas de ação e fantasia produzidas nos últimos quinze anos, à exceção, talvez, de O Senhor dos Anéis e Harry Potter. O resultado é a prova definitiva de que filmes voltados ao público jovem merecem ser tratados com todo o cuidado reservado aos “adultos”, desde que o material valha a pena – como é o caso.

Desenvolvimento

Outro fator que alçou Jogos Vorazes bem acima da média é o instigante desenvolvimento das agruras de Katniss. Nisso, aliás, a série é quase sui generis: enquanto Divergente, Maze Runner e até Harry Potter e O Senhor dos Anéis optam pela saída do herói predestinado, em Jogos o tom é sombrio, os protagonistas são vacilantes e o rumo das coisas é invariavelmente trágico – nada rotineiro, para Hollywood em geral e para sagas adolescentes em particular.

Sem falar no subtexto político: com suas críticas ao totalitarismo e à manipulação política e midiática, a série estabelece uma conexão imediata com o tumultuado (circa 2015) mundo do espectador, além de enriquecer as sequências de ação com seus desenlaces imprevisíveis – ou o filme não seria, a seu modo, a série teen mais realista já levada à tela.

Adaptação

Por fim, o diferencial mais marcante de Jogos talvez seja o capricho com que os livros foram adaptados para o cinema. Se o primeiro Harry Potter, lá em 2001, parecia colorido e infantilizado até para seus pequenos leitores, ou se a saga Crepúsculo exacerbava a vocação cafona com seu desprezo por boas atuações e efeitos decentes, em Jogos, toda a atenção dos diretores Gary Ross e Francis Lawrence, bem como dos estúdios Lionsgate, foi voltada à recriação cuidadosa da atmosfera e dos eventos dos romances de Suzanne Collins – na verdade, os filmes melhoraram o original da escritora, tornando a trama mais compacta e fluida, e enriquecendo os personagens com o time de peso que os interpreta.

Eis a lição que fica da saga: contra outras mais “sérias” que tentaram e quebraram a cara – Matrix, O Hobbit –, assim como outras que começaram bem e degringolaram – nenhuma tanto quanto Piratas do Caribe -, Jogos Vorazes é a ocasião feliz em que o bom senso e a inspiração original prevalecem: evoluindo sem perder a cara, adensando sem complicar, avançando sempre na direção mais coerente, sem necessariamente ser a mais agradável, a história de Katniss Everdeen torna-se referência para a produção blockbuster de Hollywood, uma rara criação memorável em um gênero e público-alvo tão carentes de obras inteligentes e com mérito artístico. Desta vez, pelo menos, a flecha acertou no alvo.