Muitos dos personagens que o ator Mel Gibson viveu na sua carreira sofrem fisicamente na tela: são espancados, levam tiros e choques, se envolvem em acidentes de carro… Às vezes até morrem. Parecia, para quem via os filmes dele no ápice da sua carreira nos anos 1980 e 1990, que esse sofrimento todo era uma exigência contratual do ator: “Bem, neste filme X Mel Gibson vai se arrebentar todo numa batida de carro, neste filme Y terá os dedos dos pés quebrados via marteladas, e no filme Z será estripado enquanto é visto numa pose que remete à crucificação”…

Parece brincadeira, mas isso revela um pouco da alma do artista. Um artista que possuiu – e ainda possui – um inegável carisma em frente às câmeras e grande competência por trás delas. Por muitos anos, Mel Gibson foi um dos maiores heróis do cinema. Porém, como disse o Harvey Dent em Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008), ele foi um herói que acabou vendo a si mesmo se transformar em vilão. Vamos relembrar um pouco sobre a carreira dele e essa estranha transformação.

Mel Gibson Mad Max 2

O início

Muita gente pensa que Mel Gibson é australiano. Na verdade ele é americano, nascido em Nova York em 1956, e sua família se mudou para a Austrália quando ele tinha 12 anos. Seu pai é o escritor e maluco Hutton Gibson, o que talvez explique alguns traços da sua personalidade: Hutton é conhecido por ver teorias da conspiração em tudo, já veio a publico renegar o Holocausto e afirmou que o 11 de Setembro foi realizado “via controle remoto”.

Mel Gibson estudou teatro no Instituto Nacional de Artes Dramáticas em Sydney e atuou nos palcos ao lado de colegas que também viriam a se tornar famosos, como Judy Davis e Geoffrey Rush. Fez seu primeiro filme em 1977, Summer City, e depois se envolveu com um projeto do cineasta George Miller, que mudaria sua vida.

Miller era um médico que já tinha visto sua parcela de acidentes de carro impactantes, e paralelamente fazia uns curtas experimentais. Ele juntou uns 400 mil dólares e foi fazer Mad Max (1979), seu primeiro longa. O filme mostrava a sociedade se desfazendo, e uma dilapidada força policial era a única coisa que defendia os inocentes das gangues que percorriam as estradas do interior australiano. Um desses policiais, Max Rockatansky, vira alvo da mais terrível gangue de motoqueiros e perde sua família – a partir daí enlouquece, rouba um poderoso carro da polícia e sai em busca de vingança.

Gibson quase perdeu o papel de Max: uma briga de bar na noite anterior ao seu teste de cena o deixou com o rosto inchado e machucado. Mas como a produção queria mesmo “pessoas esquisitas”, ele acabou ganhando o papel quando foi testado novamente algumas semanas depois. E o resto é história: Mad Max arrebentou nas bilheterias e se tornou o mais conhecido exemplar do maluco e vibrante cinema de gênero feito na terra dos cangurus.

Miller ampliou o clima apocalíptico com a sequência, Mad Max 2: A Caçada Continua (1981), ainda hoje um dos melhores e mais insanos filmes de ação da história do cinema. Mad Max 2 foi um grande sucesso nos Estados Unidos, coisa que o primeiro não chegou exatamente a ser, abrindo as portas para a carreira de Mel Gibson.

Antes de se mudar de vez para Hollywood, porém, o ator trabalhou com outro grande cineasta australiano, Peter Weir. Em Gallipoli (1981), Mel Gibson e Mark Lee viviam dois jovens que se tornavam amigos e se alistavam no exército australiano durante a Primeira Guerra Mundial. Ambos acabam indo parar na sangrenta batalha de Gallipoli, num filme que é ao mesmo tempo épico e intimista. Depois Weir e Gibson se reuniram no suspense O Ano em que Vivemos em Perigo (1982). O ator interpretou um jornalista que se encontrava em meio ao golpe militar na Indonésia, durante os anos 1960. Os dois filmes que Gibson fez com Peter Weir permanecem como os melhores trabalhos de interpretação do ator, nos quais ele pôde exercitar outras facetas além da de herói de ação. Para quem os viu, não havia dúvidas: Gibson era um intérprete de presença e talento.

Mel Gibson Máquina Mortífera

A máquina mortífera de Hollywood

Após alguns filmes nos Estados Unidos, Gibson estava à beira do estrelato. Depois de fazer Mad Max: Além da Cúpula do Trovão (1985) com Miller – o terceiro e apenas mediano filme da saga apocalíptica, e que já foi uma coprodução entre Austrália e EUA – o ator tirou quase dois anos de férias, nos quais ficou à espera de um grande personagem. E ele veio na forma do policial Martin Riggs de Máquina Mortífera (1987). Riggs era um tira de Los Angeles com um desejo suicida que se torna parceiro e amigo de um homem de família, o sério sargento Roger Murtaugh, interpretado por Danny Glover.

O filme foi outro grande sucesso e inspirou uma popular franquia que consolidou Gibson como um dos grandes astros dos filmes de ação em todos os tempos. O primeiro e o segundo Máquina Mortífera são sensacionais e irresistíveis. Já o terceiro e o quarto… Bem, nem tanto.

Mel Gibson Coração Valente

O Oscar

Com a carreira de ator estabelecida, Gibson começou a se aventurar na direção, tendo Miller, Weir e Richard Donner, da série Máquina Mortífera, como seus mestres. O primeiro filme de Gibson como diretor foi o pouco visto O Homem Sem Face (1993), mas seu projeto seguinte lhe traria a maior consagração. Coração Valente (1995) acabou ganhando os Oscars de Filme e Direção e contava a história do líder revolucionário escocês William Wallace, interpretado pelo próprio Gibson, que travava uma luta contra os ingleses pela independência do país após sua esposa ser morta.

De novo, temos um herói perturbado movido pela vingança, como Max, e com uma loucura e capacidade para violência, como Riggs. Revendo o filme hoje, os Oscars parecem exagerados, com o filme sendo repleto de clichês dramáticos e desrespeitando os fatos históricos. Mas as cenas de batalha são incríveis, e hoje se credita a Coração Valente a ressurreição dos épicos de Hollywood. É difícil imaginar Gladiador (2000), ou mesmo alguns momentos da trilogia O Senhor dos Anéis, sem o filme de Gibson para lhes abrir as portas.

Coração Valente foi o ápice: Gibson era querido, popular, as mulheres o adoravam e os homens o admiravam, e agora ele era um ator/diretor respeitado. Mas as polêmicas estavam para surgir…

Mel Gibson nos bastidores de A Paixão de Cristo

A paixão de Mel

Mel Gibson continuou atraindo publico para os cinemas, com sucessos como O Patriota (2000) e Sinais (2002) – este, a maior bilheteria da sua carreira, feito quando o diretor M. Night Shyamalan também estava no auge. Então resolveu se aventurar num projeto importante para ele, católico fervoroso, e no qual usaria o poder que os Oscars e a bilheteria lhe davam.

A Paixão de Cristo (2004) é falado em aramaico e dramatiza as últimas horas da vida de Jesus Cristo (um ótimo Jim Caviezel). Gibson mostra o seu sofrimento nas mãos dos romanos, e depois na cruz, com uma riqueza de detalhes e uma intensidade nunca antes vista. Jesus era torturado como William Wallace no final de Coração Valente, e o interesse do diretor pela dor, tão demonstrada antes no seu épico e nos demais filmes da sua carreira, começaram a indicar que Gibson tinha alguns demônios e precisava exorcizá-los na tela…

O maior desses demônios é o alcoolismo, contra o qual o astro lutou por praticamente toda a vida. E o alcoolismo motivou a sua queda: em 2006, ao ser preso por dirigir bêbado, Gibson ofendeu os policiais que o prenderam e lançou declarações antissemitas contra eles. Esse evento teve forte repercussão em Hollywood, tradicionalmente comandada pelos judeus. Em A Paixão de Cristo muitos críticos apontaram o tom antissemita da narrativa, e as declarações de Gibson – que na época estava perto de lançar seu filme Apocalypto (2006), rodado no México e falado em maia – lançaram uma sombra sobre ele que até hoje não se dissipou.

Mel Gibson em The Beaver

Mad Mel no fundo do poço

Então veio 2010 e a vida e a carreira de Gibson saíram dos trilhos de vez. Após uma reabilitação e o divórcio da sua primeira esposa, ele se envolveu com a atriz e cantora Oksana Grigorieva e o relacionamento de apenas alguns meses – e que rendeu uma filha – teve um desfecho tumultuado. Ela o acusou de violência doméstica e em conversas gravadas por telefone que foram veiculadas na imprensa, Gibson podia ser ouvido falando coisas terríveis e racistas para a ex-amante. Essa foi a pá-de-cal: um dos mais queridos astros dos últimos 20 anos de cinema expôs a sua face mais feia e tornou-se um monstro aos olhos do público.

Gibson se defendeu, alegando que suas falas foram ditas num momento de raiva e tiradas de contexto, e tanto a sua ex-esposa Robyn quanto suas amigas Jodie Foster e Whoopi Goldberg saíram a público para defendê-lo. Mas o dano já estava feito e o outrora astro e diretor virou definitivamente uma persona non grata em Hollywood.

Mel Gibson Os Mercenários 3

Redenção?

Nos últimos anos Mel Gibson abraçou o papel de vilão. Foi o antagonista em Machete Mata (2014) de Robert Rodriguez, e repetiu a dose em Os Mercenários 3 (2014), no qual acabou sendo a melhor coisa do filme – deu gosto vê-lo abraçar com intensidade o papel de inimigo de Sylvester Stallone, trazendo um pouco de vida à fraca produção. Aliás, o próprio Stallone mais tarde confessou que queria que Gibson dirigisse o filme além de atuar, e tentou convencer o estúdio Lionsgate a deixá-lo assumir o posto, sem sucesso.

Isso indica como o nome de Gibson ainda está manchado em Hollywood. Há chance de retorno para ele? A resposta para essa pergunta é incerta, mas ele tem apoiadores ferrenhos e fortes dentro da indústria, como a já mencionada Foster e o seu amigão Robert Downey Jr. Talento, competência e uma boa dose de loucura ele tem. Com essas qualidades ele pode um dia conseguir voltar e fazer as pazes com o público. E, quem sabe, talvez a idade e vivência tenham colocado essa loucura, principalmente, sob controle.

Nos filmes, geralmente o sofrimento dos personagens interpretados por Mel Gibson era recompensado e trazia consigo um componente de redenção. A vida real não é como nos filmes, mas Gibson continua por aí, só esperando uma chance – e a sua aparição na première de Mad Max: Estrada da Fúria, no qual Tom Hardy assume o seu icônico personagem, causou comoção. Tal como Max, Mel ainda percorre a estrada, à procura de um projeto que lhe permita encerrar sua carreira numa nota positiva, apagando as memórias ruins das mentes dos seus numerosos fãs.