O cinema nacional parece, finalmente, despertar para os filmes de gênero. Esvaindo-se para outros nichos que não apenas a comédia esdrúxula que a Globo Filmes acostumou a lotar as salas de projeção brasileiras, “O Doutrinador” é mais uma produção desta nova safra que tem investido em longas de ação, terror, suspense para discutir questões pertinentes ao momento que o país passa.

Baseado no personagem da HQ criada por Luciano Cunha, acompanha-se a transformação de Miguel (Kiko Pissolato) em um anti-herói. “O Demolidor”, entretanto, falha na construção da própria jornada do herói, fragmentada, retalhada e com soluções fáceis. Os conflitos são rasos e não saem dessa primeira camada, não engajando o espectador.

Um anti-herói ou herói brasileiro?

O filme conta a história de um agente federal que se volta contra o sistema e passa a buscar justiça com as próprias mãos após uma tragédia familiar. A luta do Doutrinador é contra a corrupção sistemática, que se enraizou no Brasil. Sem recair sobre partidarismo, é o sistema quem ocupa o lugar de vilão. A questão é que, apesar de tratar esta endemia que se tornou uma das principais manchas brasileiras, a abordagem escolhida apela para a “isenção” e isto contribui para que o filme seja problemático. “O Doutrinador” fica à deriva entre uma sátira violenta e um olhar crítico do atual momento da política.

Feita para mostrar a sede de vingança e justiça que move o personagem principal, a trama se constrói carregada de gatilhos preocupantes para a atual conjectura política. Afinal, desde as manifestações de 2013, tornou-se corriqueiro querer que se acabe com a corrupção. Mas, como isso realmente pode ser feito? Mesmo que seja apenas ficcional, a solução apresentada por Gustavo Bonafé é preocupante. Ainda mais observando a onda de violência provocada durante o último período eleitoral. Por isso, uma das boas sacadas da produção foi adiar o lançamento da obra, pois, diante de uma nação polarizada fica difícil de apreciar uma jornada em que o “cidadão de bem” torna-se um matador de políticos e que não exista um tratamento consistente para amarrar a história de Miguel e justificar as suas atitudes.

Dentro do gênero, como filme de origem, os demônios que afetam o personagem deveriam ser abordados para que o espectador consiga engajar-se com o herói que está sendo construído. Como é visto, por exemplo, em “Capitão América”, “Mulher-Maravilha” e “Pantera Negra” – neste último, especialmente, a relação familiar é imprescindível para a condução do herói, o que embora seja o desencadeador das ações de Miguel, é pouco explorado em “O Doutrinador”. Assim como suas preocupações, reflexões e pontos fracos, mostrando que há um longo caminho ao amadurecimento deste gênero na produção local.

Outro problema de “O Doutrinador” é a ausência de algo que possa deter o protagonista. Não há uma ameaça que coloque o herói em xeque (nem mesmo uma meia boca como a DC se especializou em mostrar no cinema). Talvez, quem pudesse fazer frente e ser essa ameaça fosse o personagem de Eduardo Moscovis: o ator realmente encarna o vilão debochado e sem escrúpulos, mas a retirada prematura do personagem de cena elimina a possibilidade.

O sistema não consegue ser trabalhado pelo roteiro bem o bastante para servir como o maior vilão. Ele vai sempre estar presente, mas não se apresenta como uma ameaça real às ações do Doutrinador, já que todos os seus atos são eficazes em derrubar nem que seja uma pontinha dessa endemia. E sem ameaças, como se projeta um herói ou anti-herói?

Protagonista longe do ideal e diálogos caricatos

A carga dramática da narrativa não consegue se sustentar. Há momentos em que a dramaticidade é alta, como a tragédia que assola a família de Miguel, mas a sequência seguinte não consegue segurar a emoção que outrora se passou e, assim, a narrativa vai se desgastando.

Soma-se a isso a própria atuação do elenco, beirando o caricato com diálogos afetados, artificiais, e, claro, frases de efeito. Isso fica ainda pior com o fraco desempenho de Kiko Pissolato: com passagens por novelas como “Insensato Coração” e “Avenida Brasil”, o ator não consegue convencer como protagonista. Ele parece ter apenas o físico recomendado para o papel, seu corpo está presente, mas há uma constante inabilidade comunicacional nele. Isso faz com que sua intensidade só seja funcional nos momentos de ação, fora isso, ele parece deslocado e sem transmitir a emoção necessária para o público.

Visual remetendo às HQs é ponto alto do filme

Por outro lado, “O Doutrinador” é eficaz em evocar a linguagem dos quadrinhos e referenciar obras cinematográficas que bebem da mesma fonte como a trilogia “Batman” de Nolan eV de Vingança”. Já a cidade projetada no filme remete à modernidade urbana de “As Boas Maneiras”.

Para isso, Rodrigo Carvalho, responsável pela direção de fotografia, utiliza muitos planos aéreos que procuram situar o local onde as ações decorrem, apesar de não identificar a cidade da narrativa. Esse aparato cria um diálogo com muitas capitais brasileiras e dentro das produções nacionais torna essa construção visual diferenciada.

A ação também é bem fotografada e dirigida.  A câmera em slowmotion, a coreografia das lutas e o preparo físico de Pissolato ofertam a essas cenas mais fortes o que há de mais interessante em tela. A violência visual é explícita, dando um peso à narrativa. Surpreendentemente, não há medo em mostrar sangue, pessoas mortas e agressividade. O maior demonstrativo disso é a cena estrelada por Moscovis e Pissolato: a nitidez da brutalidade é visceral, espantosa e impactante.

Outro ponto relevante são os simbolismos deixados pelo design de produção, especialmente a cor vermelha constantemente presente e que eleva também a cinematografia da produção. Apesar de alguns planos internos recobrarem fotografia publicitária, o design de produção e as tomadas aéreas conseguem ofertar outra tonalidade ao filme. O qual não esconde sua alusão ao cinema hollywoodiano mais próximo aos quadrinhos.

Foi inevitável não comparar O Doutrinador ao filme amazonense Máscara Vermelha. Ambos bebem de produções hollywoodianas para forjar um herói brasileiro, mas se perdem no desenvolvimento. É interessante e importante que os realizadores e estúdios nacionais estejam voltando-se para o cinema de gênero e construindo uma filmografia mais plural no Brasil, entretanto, é preciso que se observe e procure mesclar referências distintas para a produção.

Quanto à saga do herói de Luciano Cunha, veremos se a série do Space, anunciada para 2019, conseguirá ampliar a proposta e colocar Miguel ao lado do Capitão Nascimento.