A nova produção brasileira “O Mecanismo”, série original do Netflix, mal foi disponibilizada na plataforma de streaming e logo passou a ser um dos assuntos mais comentados nos dias seguintes a sua estreia. Além das diversas manchetes internet afora, personalidades importantes expuseram suas opiniões sobre a realização. Entretanto, a fama repentina não aconteceu pelas qualidades artísticas do seriado, e sim pelas polêmicas geradas em razão do tema trabalhado.

A produção de José Padilha tem como base o livro do jornalista Vladimir Netto, “Lava-Jato: o juiz Moro e os Bastidores da Operação que Abalou o Brasil“, e dramatiza os bastidores da Polícia Federal durante as investigações dos esquemas de corrupção que culminou na Operação Lava Jato. Mesmo com o aviso reiterado a cada início de episódio sobre a série se tratar de ficção livremente inspirada em eventos reais, grandes nomes da política nacional e movimentos partidários e sociais publicaram notas inflamadas sobre o tratamento dado pela obra aos fatos usados e as figuras reais envolvidas.

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Assim como acontece com a realização protagonizada pelo Selton Melo, Padilha já havia vivido a repercussão de trabalhos polêmicos. “Tropa de Elite”, primeiro longa-metragem de ficção do brasileiro, é a realização mais notória na carreira do cineasta, colocou-o em outro patamar no cinema nacional e garantiu destaque no cenário internacional. Nesse contexto, o texto vai relacionar os aspectos em comum ou nem tanto entre o último trabalho do diretor e a sua mais prestigiada obra. Confere aí:

PONTOS COMUNS


MECANISMO DO SISTEMA

Quando a cena final de “Tropa de Elite 2” mostra em plano amplo a visão da Praça dos Três Poderes acompanhada da narração do agora Coronel Nascimento meditando a dimensão daquilo que ele chama de sistema, o longa prenuncia a principal ideia do filme e que seria usada 10 anos depois na série, “O Mecanismo”. Padilha usa nas produções a noção de corrupção sistêmica para desenvolver seu argumento narrativo, o conceito central é a corrupção tão parte da organização política onde essa não funciona sem àquela e os meios de coibir se tornam ineficazes. Tropa e Mecanismo são complementares, pode-se dizer que um até funciona como sequência do outro. A escolha de outra expressão para falar da mesma definição, funciona como uma estratégia usada com o intuito de mostrar que o seriado trata de outro momento daquilo que é desenvolvido nos filmes, ou até mesmo uma compreensão mais ampla do assunto. Deixa-se de lado os criminosos das favelas e a corrupção policial, para mostrar os peixes grandes, a corrupção de Brasília. O BOPE sai de cena e entra a Polícia Federativa, tudo isso partindo do mesmo plano fundo, da mesma ideia. Para o que as obras refletem o sistema brutal combatido pelo personagem vivido por Wagner Moura é o mesmo mecanismo aniquilador de Selton Mello.

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O VIGILANTE SOMBRIO

Assim como o Capitão Nascimento consagrou “Tropa de Elite”, a série original do Netflix também tenta usar a figura do herói. O filme e o seriado (re)criam praticamente o mesmo cenário, tem-se um sujeito facilmente reconhecido como mais um da sociedade, cheio de dificuldades e falhas como todo cidadão e como todo personagem heroico das franquias de super-heróis. Marco Ruffo e Roberto Nascimento encaram os desafios da paternidade e veem seus casamentos desmoronarem pelas suas próprias atitudes. Os dois lidam com o estresse causado pela vida pessoal transbordada na profissional e vice-versa, mas para Ruffo a saúde mental é bem mais debilitada. É a partir dos dramas pessoais que os policiais têm a força para enfrentar os homens maus e salvar o dia. Mesmo com todas as complicações, os personagens são homens prodigiosos dotados de inteligência fora do comum. Mesmo com respingos eles continuam sendo o elemento indispensável nas operações, nada funciona sem a sagacidade e onipresença deles. Tanto a série, quanto o filme cria o vulto do herói como um grito por justiça e o insistente peso da frustração nos ombros.

O NARRADOR

O recurso técnico da narração em voice over, onde o narrador ajuda ou explica o que acontece em tela, é unanime nos principais trabalhos do cinema de José Padilha. Desde a fala intensa e cruel do capitão Nascimento até a voz mansa e ácida do delegado Ruffo, explicitam para o espectador as intenções do roteiro e aquilo que o enredo quer falar. O aspecto técnico em comum entre as duas obras, muito reflete e se relaciona com o tópico anterior. Ou seja, a necessidade desse narrador onisciente, o capitão do BOPE e os delegados da Polícia Federativa, para explicar ao público o que ele precisa entender sem interpretações ou sutilezas. Essa didática pode muitas vezes soar repetitiva e até o julgamento ruim da inteligência do público em compreender o que é comunicado visualmente. O voice over é tão dominante nas duas produções que uma engancha a outra: o esperado entendimento sobre o sistema na cena final do segundo filme e a introdução crítica à irrelevância da polícia truculenta na série.

PONTOS DIFERENTES


FICÇÃO X REALIDADE

Por partir do mesmo ideal e interpretação do seu realizador, as duas produções possuem, além do óbvio, mais pontos em comum que divergentes. “Tropa de Elite” e “O Mecanismo” tem como base de roteiro situações fáticas descritas em obras literárias para desenvolver sua proposta: a violência no Rio de Janeiro e a Operação Lava Jato. Diferente do filme que se limita a criar ficção do senso comum, a produção do Netlix vai além da inspiração. Ao usar um momento político muito presente e pungente na mente dos brasileiros, a série brinca com os efeitos dramáticos produzidos. A todo momento o roteiro faz questão de lembrar a audiência que todos ali existem – seja pelas semelhanças físicas, maneirismos ou nomes, como um jogo de relacionar os personagens às suas inspirações. Não é por menos a controvérsia criada em torno de expressão repetida por personagem não correspondente ao real.


SÁTIRA X SERIEDADE

Enquanto “Tropa de Elite” é um retrato cruel da violência no Rio de Janeiro e de quem a patrocina, ainda que em forma de action movie bem comercial, “O Mecanismo”, apesar das intenções dos seus realizadores, atua como uma sátira ao cenário político que o povo brasileiro vive há muitos anos. As cenas gráficas de violência do filme cedem espaço ao deboche da série. De piadas sobre certas características de políticos que inspiram os personagens, até trocadilhos com nomes e empresas envolvidas na Lava Jato, como a empreiteira, investigada nas operações da polícia federal, Galvão Engenharia que na série se tornou Bueno Engenharia. Enquanto um produz a emoção gerada por filmes de ação sem se distanciar tanto da realidade, o outro gera o escárnio evidente. Apesar de “Tropa de Elite” eternizar bordões marcantes que ficaram na boca do público por muito tempo, o clima do longa e do seriado são bem diferentes.