Para muitas pessoas, o nome Kleber Mendonça Filho só ficou realmente conhecido em 2016. O pernambucano, que já tentara uma vaga para representar o Brasil com “O Som ao Redor” no Oscar de 2014, ganhou as manchetes nesse fim de maio graças a duas coisas: a primeira foi a recepção muito positiva de seu novo longa-metragem, “Aquarius”, no Festival de Cannes deste ano; a segunda foi o ato que ele e membros da equipe do filme fizeram no tapete vermelho do evento ao apresentarem placas afirmando que há um golpe de estado em curso no Brasil.

E porque brasileiro é um povo que tem que ser estudado, teve trocadilho com o filme estrelado pela dupla Sandy e Junior também.

Caso você estivesse em outro planeta no último mês, contextualizemos a situação. Kleber e companhia se referiam ao afastamento da presidenta Dilma Rousseff e a tomada do então vice e agora presidente interino Michel Temer, num conturbado processo de impeachment. Resultado: as imagens de Kleber e companhia em Cannes rodaram o mundo, sendo destaque nas principais publicações de cinema e outras, o que gerou reações de apoio e repúdio.

Sem entrar no mérito da discussão política, o falatório é uma ótima chance de conhecermos mais da obra de um dos diretores brasileiros mais bem avaliados pela crítica no país. Por isso, o Cine Set decidiu trazer um guia de trabalhos essenciais para quem curte cinema (ou para quem quer boicotar com conhecimento de causa ;-)) conhecer mais sobre a carreira de Kleber Mendonça Filho.

Curtas em formação

Kleber Mendonça surge no cenário do cinema primeiramente como crítico. Jornalista por formação, ele também é responsável pela programação do Cinema da Fundação, um dos espaços culturais da Fundação Joaquim Nabuco em Recife (PE). Ele começa sua produção nos anos 1990, sendo um dos registros dessa época o curta documentário em vídeo “O Homem da Projeção” (1992). Nele, a temática da relação do homem e a memória já se faz presente, tópico que reverberaria em toda a sua filmografia desde então.

Em “Enjaulado” (1997), feito ainda em Betacam, vemos outra temática que viria a se repetir no cinema de Mendonça: os receios da classe média brasileira, quase sempre representados de maneira sutil.

Com Daniel Bandeira, Kleber também dirigiria o curta “A Menina do Algodão” (2002), que reconta a lenda urbana popularmente conhecida como “Loira do Banheiro”. A temática, que remete ao gênero de terror, seria repetida com mais apuro visual e narrativo no curta seguinte, “Vinil Verde” (2004). Não por acaso, esse intrigante curta fez sucesso em festivais ao trabalhar as mais diferentes camadas de sentidos nesse pequeno conto moral com pinceladas de histórias infantis, lendas urbanas, crítica social e muito suspense. Em termos visuais, o curta é parente direto de “Paz a Esta Casa” (1994):

No ano seguinte, Kleber chama atenção ao fortalecer, sob outra perspectiva, aquilo que “Enjaulado” já pincelava no fim dos anos 1990: a alienação do modus operandi da classe média brasileira. Ao contrário do curta de 1997, “Eletrodoméstica” (2004) foca na figura feminina da dona de casa, sendo esse um curta no qual o apuro na direção de arte e uso da linguagem fílmica atingem um estado de maior domínio por parte do diretor até então, demarcando algo de sua condição de autor.

Noite de Sexta, Manhã de Sábado” (2006) destoa um pouco da unidade da carreira de Kleber Mendonça Filho até então. É um tanto menos rígido em termos estéticos, com suas imagens granuladas em preto-e-branco e uma fragmentação de aspecto menos calculado que em curtas como “Vinil Verde” e “Eletrodoméstica”, além de trazer sua narrativa a partir do relacionamento de um casal, outro ponto de menor atenção dentro da filmografia do diretor. Ainda assim, é uma obra curiosa por reverberar algo do cinema francês da Nouvelle Vague:

Um pequeno cult e a entrada no universo dos longas-metragens

Para seu primeiro longa-metragem, Kleber abriu mão das experiências de rigor estético trabalhadas em seus curtas. Escolheu fazer um filme de não ficção e escolheu uma temática que não poderia ser mais próxima dele: a crítica cinematográfica. Assim nasceu “Crítico” (2008), obra obrigatória não só para quem se aventura na atividade, mas para cinéfilos em geral.

O último curta de destaque de Kleber Mendonça Filho foi “Recife Frio” (2009). O filme, premiado em vários eventos, incluindo o finado Amazonas Film Festival, aposta novamente na aguçada ironia de seu diretor ao mostrar a chegada de uma frente fria extrema na antes ensolarada Recife. Como de praxe nos filmes de Mendonça Filho, a trama tanto pode ser acompanhada em sua camada mais superficial, graças ao formato de mockumentary, quanto por seus sentidos mais intrínsecos, diretamente relacionados a uma crítica a classe média e questões como a criação de uma identidade nordestina, a exploração do litoral pela especulação imobiliária e estrangeira, além dos processos de apagamento de memória e senso de história que a modernização traz a Recife e ao Brasil como um todo. Resultado: um filme divertidíssimo e que faz pensar.

Depois de toda essa trajetória entre curtas, médias e documentários, finalmente chega o longa que coloca o nome do diretor no mapa em maior escala: “O Som ao Redor” (2012). Diego Bauer fez a crítica do filme em 2013 para o Cine Set e apontou muito do que hoje podemos observar em retrospecto: que o longa de ritmo lento pode não ter sido um sucesso retumbante de público, mas acertou em cheio com a crítica especializada, sendo colocado quase que instantaneamente como um dos melhores filmes brasileiros da nova safra.

“O Som ao Redor” levou também vários prêmios em festivais, com destaque para as categorias de design de som (sempre um gargalo na produção nacional), roteiro e direção, embora tenha sido preterido para concorrer a uma vaga na categoria de Melhor Filme Estrangeiro no Oscar 2014. Se “Que Horas Ela Volta?”, de Anna Muylaert, tratou dos abismos sociais peculiares na sociedade brasileira de forma quase leve e descontraída, o filme de Kleber Mendonça Filho pincelou o humor de maneira o mais ácida possível em sua crítica à classe média, num exercício rigoroso de construção do discurso a partir de não-ditos, que é ao mesmo tempo a beleza e o calcanhar de Aquiles para uma maior afinidade do público em geral para com o filme. Nasce daí umas das imagens mais icônicas do novo cinema brasileiro: o banho sangrento na cachoeira.

O que reserva o futuro

O mais novo longa de Kleber Mendonça Filho é “Aquarius”, que foi colocado por vários críticos como um dos favoritos em Cannes (falando em Cannes, os resultados do festival foram bastante questionados este ano). A trama acompanha a história da jornalista Clara (Sonia Braga), que segue contra a maré da especulação imobiliária ao lutar pela manutenção do antigo prédio que dá nome ao filme, que é o local onde ela mora e onde residem muitas de suas memórias do passado.

Ainda que “Aquarius” tenha saído sem prêmios de Cannes, ficou a publicidade positiva e o apreço dos críticos de publicações importantes como a Variety, IndieWIRE, The Guadian e The Hollywood Reporter, que distribuiram notas entre 8/10 e 10/10 ao filme. É uma marca excelente, cujo detalhamento pode ser conferido na página do filme no site Metacritic, o guia todo-poderoso de outros sites de reunião de críticas como o IMDb e Rotten Tomatoes. A partir do festival francês, “Aquarius” garantiu distribuição em 17 países: Bélgica, Bósnia, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, França, Grécia, Itália, Noruega, Portugal, Polônia, República Tcheca, Suíça, Sérvia e Turquia. A estreia no Brasil deve acontecer no segundo semestre de 2016.

Pronto, agora você pode ter seu boicote ao filme fortalecido, ou ficar com mais vontade ainda de ver “Aquarius” e os demais filmes de Kleber Mendonça Filho. Ah, sim, e o próximo projeto do diretor, “Bacurau“, já está engatilhado.