Algumas cinebiografias têm a cara de certos diretores, sem que você precise discorrer sobre os motivos desta escolha, na verdade apenas observar suas respectivas filmografias. Por isso, Snowden: Herói ou Traidor, filme biográfico centrado em Edward Joseph Snowden, o analista de redes da computação que trabalhou para a Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos e revelou, em 2013, um esquema de espionagem em massa promovido pelo órgão, não poderia ser realizado por outro cineasta que não fosse o polêmico e idealista Oliver Stone.

Para quem dedicou grande parte da sua filmografia voltada ao ativismo político, sempre utilizando a terra do Tio Sam como âncora para criticar os ideais americanos na década de 80 e 90, Stone andava meio sumido do mapa comercial, já que W. (2008), Selvagens (2012) e o documentário A História Não Contada dos Estados Unidos (2012-2013) ressoaram pouco no circuito comercial. Snowden, de certo modo, seria o palco ideal para a volta do cineasta ao militarismo de esquerda, o seu cinema de combate ao sistema, até por apresentar elementos ácidos da história recente americana: conspiração, poder, paranoia e democracia.

O próprio filme já abre com o personagem-título, interpretado pelo polivalente Joseph Gordon-Levitt, em 2013, quando ele se reuniu em Hong Kong com os jornalistas do jornal The Guardian (vividos pelos ótimos Zachary Quinto e Tom Wilkinson) e a documentarista Laura Poitras (Melissa Leo), responsáveis em expor seu caso e seu cotidiano vivenciado na NSA. Paralelamente, acompanhamos uma narrativa não-linear que segue a vida de Edward desde o seu treinamento militar até a sua entrada na guerra digital da maior agência de espionagem, além de sermos inseridos no seu relacionamento amoroso com Lindsay (a talentosa Shailene Woodley), todos elementos primordiais na construção do quebra-cabeça que permitirá ao público compreender os motivos que o levaram a tomar as decisões conhecidas.

Joseph Gordon-Levitt em Snowden

Praticamente, Snowden, como filme, segue um registro documental, passo a passo, das razões que levaram o agente a denunciar para o mundo a vigilância eletrônica invasiva dos EUA. Stone não foge do básico no que se refere aos elementos descritivos já vistos no documentário Citizenfour – que faturou o Oscar no gênero ano passado –, apenas adaptando-os para um esquema mais comercial e cinematográfico, o que explica o enxerto romântico para criar uma empatia mais emocional do público com o personagem.

O fato de se cercar minuciosamente com todos os envolvidos relacionados à situação, desde a garantia dos direitos autorais sobre os livros que inspiraram o filme, das pessoas que ajudaram o ex-espião a revelar o verdadeiro Big Brother da realidade e do próprio Snowden, que participou ativamente das principais decisões do filme, permitiu Stone prestar um ótimo serviço de estudo de personagem, que sabe equilibrar, de forma sóbria, as motivações do personagem, junto ao enredo documental de espionagem.

Vale ressaltar que o equilíbrio nunca foi uma das maiores virtudes do diretor em razão do teor inflamado de seus filmes (por mais que goste de Platoon (1986) e Nascido em Quatro de Julho (1989), são obras que não deixam de apresentar seus momentos histéricos e grandiloquentes), porém, em Snowden, ele encontra o tom discreto necessário para narrar sua história, que claramente é um tributo ao seu personagem. Nesse aspecto, o filme funciona como um belo exercício de construir e desconstruir o lado humano de Edward durante as suas várias fases. As transformações do analista de um sonhador em busca do ideal americano que, quando confrontado com o poder, frustra-se em perceber que os seus valores e direitos individuais não são respeitados, em prol do discurso da segurança elaborado pelo governo pós-11 de setembro.

Logo, a produção é eficaz em apresentar aos olhos do público os motivos que levaram Edward a expor a conspiração. Através do estudo moral de personagem, compreendemos as suas razões, por meio dos seus embates éticos subjetivos, que ganham uma ótima dimensão dentro do escopo do filme, mesmo com uma subtrama romântica convencional e quadrada na sua essência, mas que funciona na dimensão psicológica – afinal, é a preocupação de Snowden com Lindsay uma das forças motrizes que determinará o sacrifício final da sua decisão. Claramente, o subtítulo nacional foi uma escolha errônea da produtora, afinal, para Stone, não há parcialidade: Snowden é o cânone de herói, alguém que abdicou das suas convicções políticas para seguir os valores éticos corretos do bem comum. Sem dúvida, é o alterego ideal do diretor, geralmente visto como o herói subversivo solitário dentro do esquema hollywoodiano.

Snowden: Herói ou Traidor

Contudo, se Stone acerta neste lado de humanizar o protagonista, falta mais ousadia em aprofundar o seu viés político. É inegável que há boas ideias e argumentos dentro do filme. Uma delas é analisar o sistema como um todo e não por partido. Não faltam dedos apontados para os governos de Clinton, Bush e de Obama, sendo que, neste último, Stone utiliza de forma interessante dois discursos do atual presidente – um logo que foi eleito e outro quando a polêmica estourou –, evidenciando a contradição do governante, que mudou sua fala inicial da importância da liberdade em troca da segurança no segundo momento. Aliás, outro ponto fundamental de Snowden é mostrar que o discurso da luta contra o “terrorismo” surgido na paranoia de 11 de setembro é uma mera desculpa para que os EUA utilizassem a espionagem para manter o seu controle econômico, social e político do país frente às outras nações – inclusive o filme cita a ex-presidente Dilma Rousseff e a Petrobras como vítimas desta espionagem.

Pena que parte destes argumentos e o rico material que tem nas mãos não permitam uma visão crítica mais profunda por parte de Stone, que por estar mais contido do que o habitual, jamais consegue atingir um potencial satisfatório da sua trama. Snowden fica mais preso a seu estilo descritivo documental – e vale ressaltar, é bem eficiente – do que provocar o espectador a ter suas próprias reflexões, esquivando-se da própria controvérsia que poderia deixar o longa mais poderoso ou dinâmico no seu discurso, e aproximá-lo a outra biografia lançada este ano, Steve Jobs, que tinha no roteiro os ótimos diálogos ácidos de Aaron Sorkin, que ajudavam a munir o seu debate. Por mais que utilize uma abordagem visual que agrega suspense e paranoia na sua montagem não-linear, faltam momentos tensos, que ajudem a produção a fugir dos debates e discursos convencionais da narrativa. Pelo menos, o cineasta constrói um momento digno de nota quando Edward discute com o seu chefe O’Brien (Rhys Ifans) diante de um enorme telão, transformando a figura de autoridade em um enorme gigante, enquanto deixa diminuído na tela o protagonista. Uma bela metáfora do combate de Davi contra Golias e entre o homem versus o sistema.

Joseph Gordon-Levitt tem uma atuação que é o coração que move o longa-metragem, principalmente pelo trabalho obsessivo de incorporar com exatidão assustadora a voz e os traços comportamentais de Snowden na vida real. Vale ressaltar que, mesmo tendo pouca semelhança física com o verdadeiro, Levitt praticamente encena no seu talento o estilo racional e introspectivo do espião. Por sua vez, Shailene Woodley faz uma bela dinâmica com o ator, oferecendo o centro emocional amoroso necessário para sua personagem na trama. O destaque do elenco secundário fica por conta de Rhys Ifans e Nicolas Cage, que mesmo com espaços reduzidos na trama, deixam uma ótima impressão nos momentos que aparecem.

Joseph Gordon-Levitt e Shailene Woodley em Snowden: Herói ou Traidor

Dentro das outras biografias feitas por Stone, Snowden – Herói ou Traidor não se mostra tão impactante ou atraente do ponto de vista crítico, como ocorre com JFK – A Pergunta que Não quer Calar (1991) ou Nixon (1995). Porém, está um degrau acima de seus últimos trabalhos e talvez seja o melhor do cineasta deste o incompreendido Reviravolta (1997). Por mais que faltem ousadia e ambição frente a um texto tão promissor, Stone consegue mostrar esta história de forma até fascinante, e sinceramente espero que este novo trabalho funcione como a centelha necessária que reative o espírito crítico que parecia adormecido no cineasta nos últimos tempos. Snowden oferece um tema relevante e polêmico deste novo século, e que condiz muito para explicar alguns dos elementos que levaram à eleição recente de Donald Trump e também nos fazer compreender o mundo cada vez mais paranoico e perverso em que vivemos.