Não é de hoje que Chan-Wook Park desponta como um dos diretores de carreira mais proeminente da Coréia do Sul. Depois de estourar com sua Trilogia da Vingança nos anos 2000, da qual o destaque maior fica para o cult Oldboy (2003), ele até arriscou carreira nos EUA, dirigindo Nicole Kidman e Mia Wasikowska no injustiçado “Stoker: Segredos de Sangue” (2013). Porém, é com esse “The Handmaiden” (2016) que Park gera novo consenso de público e crítica.

Como é marca da filmografia de Chan-Wook Park, o uso de referências para além do universo oriental se faz presente no novo longa desde a ideia base. O filme é uma adaptação do livro “Fingersmith”, de Sarah Waters, que sai da Inglaterra do século XIX e vai para a Coréia sob domínio dos japoneses nos anos 1930.

Nele, a jovem Sook-Hee (Tae Ri Kim) é uma farsante para quem é oferecida uma chance de ouro: trabalhar como criada de Lady Hideko (Min-Hee Kim), herdeira de uma grande fortuna que vive reclusa com o tio Kouzuki (Jin-Woong Jo). O emprego, no entanto, é só uma fachada, pois o que Sook-Hee deve realmente fazer é ajudar o Conde Fujiwara (Jung-Woo Ha) a conquistar e casar com Hideko, para depois mandarem a inocente herdeira para um hospício e dividirem a fortuna entre si. Apenas um detalhe atrapalha toda a falcatrua: Sook-Hee e Lady Hideko se apaixonam.

Representatividade e Estilização

Chan-Wook Park encontra em “The Handmaiden” todos os elementos que são caros ao seu cinema: relações de poder mediadas por sexo e violência e reviravoltas mais que inesperadas são apresentadas por um visual impecável, no qual fotografia, figurino e direção de arte transportam o espectador para um universo sombrio e altamente estilizado.

A novidade aqui é o equilíbrio que ele busca entre o ato de dominar esses elementos e o de dar algo mais que o simples fetiche pela relação sexual entre duas mulheres num filme que, como viemos a saber mais a frente, tem em outro fetiche, o sadomasoquismo, uma de suas reviravoltas (e digo isso sem medo de revelar demais sobre a trama, pois no trailer do longa já temos essa informação, embora não saibamos o peso dela no filme). Em entrevistas concedidas pelo diretor para a divulgação de “The Handmaiden”, ele afirma ter consultado mulheres homossexuais na tentativa de criar uma interseção entre o público admirador de seu trabalho e o público que inevitavelmente surge representado na tela.

Tal escolha deu uma dimensão interessante à obra, embora o que vejamos possa ser problematizado, e muito, por um espectador que não conhece o “modo Chan-Wook Park” de contar histórias. Tem-se em “The Handmaiden” itens nada realistas como uma criada dando um pirulito a sua patroa enquanto lhe dá banho, ou o uso de utensílios sexuais que não parecem nada práticos em relações sexuais lésbicas, além da ampla exposição do corpo das personagens femininas nelas envolvidas.

Seria facílimo usar tudo isso para explicar como o olhar masculino sobre os corpos tenta reduzir as personagens a estereótipos de como homens imaginam esse tipo de relação (ou veem em vídeos pornôs), mas isso só acontece numa análise apressada. Observando o desenvolvimento da narrativa como um todo, vemos que a obra é marcada pela estilização de todo e qualquer aspecto visual, tal como nos outros filmes do diretor, sendo as belas e meticulosas imagens de grande carga emocional e alto nível de distorção de realidade uma assinatura de sua filmografia; logo, o sexo é sim fetichizado, como todo o resto é no cinema de Chan-Wook Park, da violência à tecnologia (vide “I’m a cyborg, but that’s ok”, 2006).

O que se destaca no meio disso tudo é que, como bom contador de histórias sombrias, o diretor também sabe como fazer os personagens nos interpelarem como sujeitos. Com Sook-Hee e Lady Hideko, vemos duas mulheres multidimensionais para além do que aparentam, tópico este que não entrarei em detalhes para não estragar a surpresa. Curiosamente, os personagens masculinos são os que tentam brecar o movimento da trama das duas mulheres. Eles são pouco desenvolvidos, como no caso do tio (o que é até uma pena, pois é um personagem que parecia prometer mais do que cumpre) ou surgem como flat characters como o Conde Fujiwara, que chega quase ao ponto de prejudicar a trama.

Com isso, percebe-se nos filmes de Chan-Wook Park uma evolução no tratamento da mulher. Ao passo que elas são marcantes em seus filmes, sempre existiram brechinhas problemáticas na representação dessas mulheres:  a pobre Miho de “Oldboy” sofria uma série de violências com a função quase que exclusiva de mover a narrativa do personagem principal homem para frente; já a jovem India, de “Stoker”, teve o despertar de seus instintos a partir da relação encoberta de tensão sexual com o tio e de rivalidade com a mãe, ainda que a construção de seu próprio caminho tenha amplo destaque na trama. Sook-Hee e especialmente Lady Hideko pertencem a uma linhagem de damas do universo do diretor coreano que demarcam uma transformação no mostrar a mulher nessa filmografia, ainda que envoltas pelas cores nada naturalistas de Park.

Confinamento, conhecimento, sexo

Como bem disse anteriormente, poucos temas são tão caros a Chan-Wook Park quanto sexo e violência, e em “The Handmaiden”, os dois se misturam. Seguindo com muito mais erotismo que um “50 tons de cinza”, o diretor por vezes bebe (indiretamente?) da fonte do Marquês de Sade ao apresentar o enclausuramento e aparente pureza de Hideko e a obsessão do tio Kouzuki com a literatura erótica. Aliás, a relação entre conhecimento e perda da inocência, tão cara à cultura ocidental/cristã, é repaginada, literalmente, a partir do que os livros raros e proibidos de Kouzuki representam para a trama, assim como na forma com que Hideko lida com eles.

Já Fujiwara, curiosamente, deseja tanto ter dinheiro, status e controle que suas investidas são as mais estéreis. Elas não se relacionam à essência do prazer sexual, de um entregar-se ao outro por amor ou por luxúria, e sim a uma série de passos que ele deve seguir para conseguir alguma outra coisa. É o principal contraponto à relação de Hideko e Sook-Hee, pautadas por sentimento, e não finalidade, que é o que constatamos principalmente a partir do terceiro e arrastado ato do filme, que se prolonga um tanto desnecessariamente.

Com “The Handmaiden”, Chan-Wook Park busca guiar seu cinema tanto pelo rigor, energia e loucura que lhe são caros, quanto por uma construção mais orgânica das personagens femininas, sendo muito bem sucedido. De quebra, ele trouxe um acerto ao público depois dos não tão bons quanto poderiam ser “Segredos de sangue” e “Sede de sangue” (2009), garantindo um provável status de cult para mais um de seus longas.