Há três anos, Adam McKay elevava seu nome no hall dos diretores contemporâneos ao fazer uma deliciosa sátira política sobre a crise econômica de 2008. A Grande Aposta é uma comédia “importante”, um interessante e charmoso resumão para leigos que não entendem patavina de assuntos econômicos. É um filme que ganhou a simpatia por parte do público e da crítica pelo modo ácido que utilizava as referências da cultura pop para contar sua história. McKay transformou um assunto maçante em algo deveras envolvente.

Em Vice, o diretor revela ser devoto da tática “time que está ganhando não se mexe”, afinal, o seu novo filme segue a mesma cartilha cinematográfica do anterior: é uma cinebiografia política, que apresenta a mesma estética visual dinâmica – de montagem exímia – e um leque grande de diálogos e frases de efeito. Como já era esperado, um raio nunca cai no mesmo lugar duas vezes e Vice apesar de tentar estabelecer uma nova linguagem de discutir o filme político dentro do cinemão americano é bem falho substancialmente falando, principalmente em construir uma narrativa que dê relevância crível a uma personalidade política importante da história recente.

Ao relatar a trajetória de Dick Cheney (Christian “camaleão” Bale), político influente de Washington e que chegou ao cargo de vice-presidente no período de 2001 a 2009 durante o governo de George W. Bush (Sam Rockwell), onde tomou decisões de cunho pessoal que mudariam o cenário americano após os atentados de 11 de setembro, o filme já demonstra nos minutos iniciais que aquele mesmo deboche político presente em A Grande Aposta continua vivíssimo, ao mesclar sarcasmo e ironia, a partir de uma narrativa não-linear que é muito bem construída pelo ótimo trabalho de montagem de Hank Corwin (que também trabalhou A Grande Aposta). Este por sinal, segura a onda de McKay nos momentos em que o diretor se perde nos excessos narrativos, que por sua vez, encontra no seu montador, um aliado importante, na elaboração do quebra-cabeça narrativo bem pensado e ágil, o que facilita o filme ser mais inteligível entre o discurso e as imagens que o anterior da dupla.

Vice no campo visual é uma obra esperta, cheio de liberdades narrativas, com um McKay mágico, acertando nos floreios e truques cinematográficos oferecidos ao público. Do divertido final falso as quebras da quarta-parede cinematográfica, e do bom uso de flashbacks como pontos de transição entre presente e passado que nunca se tornam cansativos – o diretor deixa claro, que o tom farsesco e satírico do seu filme é um ótimo instrumento audiovisual de sedução e diversão para contar a história política de um país.

Só que diferente de A Grande Aposta, que conciliava bem o conteúdo e a forma, Vice se perde na sua história demasiadamente longa, que muitas vezes atropela fatos históricos, sem dá-los uma relevância coerente. É na progressão narrativa, de estruturar o seu personagem no discurso político do filme é que encontrarmos uma construção vazia em relação à história de transformações de Cheney no que se referem as suas ações e motivações. O roteiro escrito pelo próprio diretor não explora os pequenos diferenciais – os principais conflitos do vice-presidente – que poderiam encorpar sua estrutura dramática e a elevá-la em algo além da mera superfície de estudo de personagem.

O texto parece mais preocupado em fazer graça com as falhas de caráter do biografado, logo, perde o foco em estudá-lo, e, assim, a oportunidade de mergulhar fundo nas suas motivações e entender os porquês de seus atos. Isso implicaria em iluminar o espectador a enxergar as verdades sobre a sua fome por poder, abrindo espaço para uma melhor compreensão da tridimensionalidade do vice-presidente americano.

Por isso, acompanhamos um personagem esvaziado, que dá espaço a um vilão maquiavélico, porém, caricato pela falta de uma abordagem cuidadosa na sua construção. Isso fica mais evidente na primeira meia-hora do filme que cria uma ascensão política e pessoal muito brusca (e rasa) sobre Cheney, sem uma apresentação de conflito que justifique sua mudança de um homem comum, violento e alcoólatra em um dos políticos mais poderosos e polêmicos do mundo. Afinal, o vice-presidente chegou até o topo mais alto da pirâmide política, pela própria sorte ou porque foi realmente um sujeito estrategista que tinha visão para orquestrar e manipular suas relações?

Há muitas lacunas que McKay oferece sobre um determinado ponto de vista em relação ao ex-vice, mas que ele próprio sabota através de recursos artificiais que minam a possibilidade de uma parte dramática mais sólida, seja pelo ritmo didático das narrações em off, seja pela caricatura de como conecta a comédia sombria – que muitas vezes estendem suas piadas, além do ideal – com o drama de personagem, este muito mal resolvido.

Se por um lado, o texto de McKay é problemático em construir a figura política de Dick e das pessoas que o circundam, pelo outro como sátira política ele apresenta boas reflexões. Há uma boa consistência quando o filme se prende aos eventos de guerra, após os atentados de 11 de setembro, para discorrer sobre a recente história americana. Cheney enxergou no atentado, a oportunidade perfeita de estabelecer a sua própria concepção da arquitetura da guerra ao terror, ao colocar os custos da vida humana abaixo do seu desejo de poder. Vice neste ponto toca fundo em temas pesados como os monstros que o próprio país cria – fora e dentro da sociedade -, criaturas que crêem estarem certas e usam da tragédia para ganharem adeptos para propagarem suas crenças e fanatismos ideológicos. É uma crítica muito certeira a mentalidade política atual, que faz do filme um olhar atual e ao mesmo tempo uma dica cinematográfica preventiva do que podemos evitar no futuro, a partir do que conhecemos da nossa história.

A atuação de Bale é realmente certeira na composição fria e cínica de Cheney, porém, sem deixar de humanizar o estilo manipulador do vice-presidente. O ator sabe explorar cada situação da fase dele, do homem medíocre ao sujeito dotado de firmeza e segurança. Ainda assim, está longe de ser um dos ensaios memoráveis que o ator realizou no cinema. Amy Adams, como a esposa Lynne Cheney é outra que se destaca, com momentos relevantes principalmente nos dramáticos, onde funciona como bussola moral para o ex-presidente, inclusive sua fala “O trabalho do vice-presidente é esperar o presidente morrer” é uma das melhores da produção . Logo, é uma pena o roteiro praticamente esquecê-la em um momento importante do longa. Steve Carrell como o primeiro ministro Donald Rumsfeld e Sam Rockwell como Bush filho, mesmo com poucas cenas, pontuam com eficiência seus personagens.

No fundo, Vice tenta ser uma A Grande Aposta 2, ainda que patine muito pela falta de solidez do seu texto. Visualmente é um filme delicioso de se acompanhar, com McKay habilidoso em contar uma crônica sombria e polêmica da história americana, dentro de uma ótica atual sempre relevante – aqui no Brasil, tivemos um vice-presidente que não contou papo e usurpou o poder – e que revela que os fatos temerosos que se passam na América, mostrados com bastante humor pelo filme, não são fatos isolados de um país até porque fazem parte da era globalizada em que vivemos. Entre as verdades e mentiras apresentadas sobre Dick Cheney e o capítulo obscuro da história americana, Vice mesmo importante na sua denúncia, fica pelo meio do caminho pela falta de equilíbrio entre a forma e o conteúdo.