O cinema vive de rótulos e classificações e com o terror não é diferente. Ao longo das décadas tivemos gótico, horror corporal, giallos, gore, splatters, slashers, meta, torture porn, found footage e o diabo a quatro… Quase tantas divisões e subgêneros dentro do termo global “Terror” quanto o número de vítimas do Jason.

O termo da moda agora é o “pós-horror” ou “pós-terror” – post-horror em inglês. É uma expressão que cinéfilos e estudiosos do cinema têm ouvido este ano, e já vem se configurando num conceito que engloba várias características. Foi o jornalista inglês do The Guardian, Steve Rose, quem cunhou o termo, ao escrever um artigo sobre os recentes filmes independentes do gênero que vêm chamando a atenção, muitas vezes ofuscando lançamentos dos grandes estúdios, e também confundindo o público, por não fazerem uso dos clichês e bobagens geralmente associados aos filmes de terror.

Sobre a questão em si do pós-horror, cabem então alguns questionamentos: afinal, o que define um filme “pós-horror”? Por que tantas pessoas têm dificuldade em reconhecer esses filmes como horror? E… realmente, trata-se de algo novo dentro do gênero? Vamos tentar responder a essas questões.

O que é o tal pós-horror?

Rose foi motivado a escrever seu artigo pelo lançamento na Inglaterra de “Ao Cair da Noite”, filme norte-americano de 2017 dirigido por Trey Edward Shults que trazia a história de uma família isolada e apavorada com algo que surgia à noite. O trailer de “Ao Cair da Noite” chama a atenção do espectador – provavelmente por mostrar muito pouco e não explicar o filme tintim por tintim, como a maioria dos trailers de hoje faz – e não deixa dúvida na cabeça de quem o assistir: trata-se de um filme de terror.

Mas com algumas diferenças… É diferente o suficiente para levar alguém a cunhar um termo para esse tipo de filme e vários estudiosos do cinema e jornalistas seguirem a onda. “Ao Cair da Noite” não tem sustos baratos, os chamados jump scares em inglês – pense no gato pulando do nada sobre o herói da história, ou no aumento súbito do acorde na trilha sonora. Nada disso se vê no filme. É também um filme sugestivo, com apenas alguns instantes de violência gráfica e que deixa lacunas no seu enredo para o espectador completar. Inferimos, na história, que há um vírus ou algum agente biológico matando as pessoas, mas enquanto vários outros exemplares do gênero fariam disso o elemento central da narrativa, o roteiro de “Ao Cair da Noite” prefere explorar o medo e a paranoia decorrentes da situação. O longa acaba e nem sabemos ao certo o porquê daquelas pessoas viverem sob tanta tensão.

Ou seja, trata-se de um trabalho que surpreende a quem já está acostumado com décadas e décadas de jump scares e terror sanguinolento hollywoodiano. É um filme que, de propósito, frustra as expectativas de um enorme público e, talvez, por isso as reações aos exemplares do pós-horror têm sido extremas. Não é difícil vermos por aí gente chamando “Ao Cair da Noite” de “PIOR FILME DE TODOS OS TEMPOS”, ou extravasarem sua frustração em voz alta na saída do cinema ou mais tarde, online.

'A Bruxa': tão sinistro quanto o hype

A mesma coisa aconteceu com “A Bruxa”, do diretor Robert Eggers, em 2016: vendido por um marketing esperto, a maioria das pessoas que foi ver o filme saiu frustrada, por se deparar com um estudo sugestivo e insinuante sobre o poder do fanatismo religioso, e no qual a bruxa do título aparece em UMA CENA! Os críticos em geral têm adorado os filmes pós-horror, enquanto o público, muitas vezes, sai da sala com raiva. Porém, essas mesmas salas têm ficado cheias: “A Bruxa” e “Ao Cair da Noite” se pagaram com folga nas bilheterias, superando em muito o valor gasto nas suas produções.

Acabou que esse rótulo pegou e nele foram incluídos filmes diversos como Babadook (2014) de Jennifer Kent, “Garota Sombria Anda Pela Noite” (2014) de Ana Lily Amirpour, Corrente do Mal (2015) de David Robert Mitchell, “Personal Shopper” (2016) de Olivier Assayas, “A Ghost Story” (2017) de David Lowery, e o recente mega-sucesso Corra! (2017) de Jordan Peele, de longe o mais bem sucedido exemplar dentro do pós-horror, tendo arrecadado mundialmente 252 milhões de dólares com um orçamento de produção de 4,5 milhões. Até mãe! (2017), de Darren Aronofsky, já vem sendo encaixado em alguns círculos dentro do pós-horror. O que todos eles têm em comum? São produções baratíssimas, que fazem uso de aspectos e elementos do gênero terror – às vezes seus realizadores hesitam em situá-los dentro dessa classificação – e que trocam os sustos, monstros e sangue por atmosfera, enfoques psicológicos ou existenciais e, no caso de “Corra!”, crítica social.

Crítica: Corrente do Mal, de David Robert MitchellA cultura do medo: O que não assusta você?

A maioria do público, quando pensa em filmes de horror, os associa imediatamente a sustos. “Filmes de terror têm que dar susto!” é a mentalidade de montanha-russa, de trem-fantasma, ainda muito forte na cabeça das pessoas. Não é inteiramente culpa do grande público, afinal anos de condicionamento pela indústria de Hollywood fazem isso.

Mas é verdade também que este mesmo público, muitas vezes, não tem a mente aberta para outras propostas. O que muita gente parece não perceber é a elasticidade do gênero – filmes de terror podem ser sobre, bem, qualquer coisa. Claro, existem fórmulas e estruturas rígidas dentro do gênero, mas elas não constituem a totalidade do que ele representa.

O que nos traz ao meu último questionamento…

O termo “pós-horror” faz sentido?

É curioso. O motivo pelo qual críticos adoram esses filmes e grande parte do público não gosta é o mesmo, o fato dos exemplares do pós-horror rejeitarem os clichês tão associados ao gênero – que, sempre vale a pena lembrar, é o mais lucrativo do cinema. Num ano de crise em Hollywood, o terror foi um ganha-pão confiável e surpreendente para os estúdios e produtoras.

Porém, sinto aquela velha dose de “elitismo cultural” toda vez que alguém usa esse termo. Parece que só recentemente os críticos descobriram que filmes de terror podem ser inteligentes, criativos e inovadores, o que é uma grande besteira, obviamente. Fazer isso é desprezar a longa e incrível história de um dos gêneros cinematográficos mais importantes e ricos em potencial imagético. “A Bruxa” e “Ao Cair da Noite” são sugestivos e utilizam clichês de forma criativa (quando não os ignoram)?

Ora, “Inverno de Sangue em Veneza” (1973), “O Iluminado” (1980) e “A Bruxa de Blair” (1999) também o fizeram. Para voltar ainda mais no tempo… e “Os Inocentes” (1961) e os filmes do Jacques Torneur lá na década de 1940, sugestivos até a medula? “Corra!” e “Corrente do Mal” usam seus elementos fantásticos como metáforas para o comportamento humano?

Ora, o recém-falecido George Romero já não fazia isso com seus zumbis desde o fim dos anos 1960? David Cronenberg não fez isso por grande parte da carreira? Roman Polanski não fez isso com a sua trilogia dos apartamentos? Andrzej Zulawski não fez isso com “Possessão” (1981)? Lars von Trier não fez isso com “Anticristo” (2009)? Não faz tanto tempo deste último, talvez ainda dê para encaixá-lo no pós-horror. E falando na trilogia dos apartamentos de Polanski… O que seria de mãe! sem ela? O que seria de quase todos esses filmes rotulados como pós-horror sem o David Lynch? E esses são só alguns exemplos…

A maior comprovação da besteira que é o termo pós-horror foi o tributo que Jordan Peele fez no Twitter sobre a morte de George Romero em julho passado. Peele postou no seu twitter uma foto do ator Duane Jones, astro do clássico “A Noite dos Mortos Vivos” (1968), e relembrou a todos que Romero foi o primeiro a escalar um ator negro para protagonizar um filme de terror. Sem tirar nem um pouco o mérito do seu próprio trabalho, que é ótimo, Peele recordou a preciosa história do gênero e onde o seu filme se situa dentro dele, ou seja, como um herdeiro das sátiras sociais de Romero e outros nomes do cinema independente americano.

Em tempos de “pós-verdade”, aqui vai uma verdade na qual se pode mesmo confiar: “pós-horror” é uma bobagem, o que existe mesmo é o horror. Filmes de horror podem ser bons ou ruins, mas a noção de que eles começaram a ficar inteligentes, sugestivos e maduros do ano passado para cá é simplesmente ridícula. Os seres humanos são obcecados por divisões e classificações – porém este novo termo não faz sentido simplesmente porque não descreve nada novo. Há espaço para o filme estilo trem-fantasma, e também para outro tipo de produção: cabe aos estudiosos do cinema, e também ao público, uma percepção mais ampla do gênero para saber diferenciar um do outro e apreciar ambos, dependendo das suas qualidades e propostas, e acima de tudo sem elitismos e preocupações com rótulos. Ainda mais quando eles não fazem muito sentido.