“A Febre” é um filme de luta. Não aquela luta física de um John McClane ou John Wick com socos, pontapés e tiros a todo instante, mas, sim uma resistência à tentativa de dizimação identitária, cultural e de valores.
Esta resistência atende pelo nome de Justino (Regis Myrupu), um indígena que trabalha como vigilante no Polo Industrial de Manaus há 20 anos. Tudo segue normalmente em sua vida até o dia em que a filha, Vanessa (Rosa Peixoto), recebe a notícia de que foi aprovada no curso de Medicina da Universidade de Brasília. Com a perspectiva dos novos rumos, ele passa a refletir sobre a vida que leva e da sociedade em que está inserido.
Se a dizimação indígena na época do Brasil Colônia foi feita através do escambo benéfico muito mais para os portugueses, das doenças trazidas pelos europeus, da evangelização e da escravidão, nos dias atuais, o processo ocorre de modo mais sutil e sofisticado, ainda que tenha os mesmos efeitos danosos. “A Febre” apresenta isso já na banalização da identidade daquelas pessoas ao parecer que todo indígena é igual e se entendem, independente de línguas e dialetos.
Quando Vanessa é chamada para atender uma senhora em um pronto-socorro, por exemplo, há uma crença de que ela saberia como lidar por simplesmente ser indígena, logo, conseguiria falar fluentemente com a paciente, o que não chega a ocorrer. Igual também faz o vigilante Wanderlei (Lourinelson Vladmir) ao afirmar que, ao ver diversos chineses, imaginou serem todos da mesma tribo do colega Justino.
REFLEXOS DE UMA CIDADE
Diferente da comunhão de uma aldeia em que a vida coletiva é parte da essência daquelas pessoas, Justino é um solitário em Manaus. Ao longo de toda a trama, acompanhamos o seu vai e vem da casa onde mora na periferia até a fábrica. Aparentando cansaço e calado durante grande parte do percurso, o protagonista parece se arrastar toda vez que sobe a rua após saltar do ônibus, quase como um morto-vivo. Não cria elos com ninguém exceto com a família, a qual, em suas reuniões, mantém o hábito de falar sempre em tukano, uma forma de manter viva a lembrança de onde vieram. Desta forma, acompanhamos singelos momentos de luz como na bela cena em que o protagonista, defendido de forma singela e doce por Regis Mypuru, conta uma lenda da floresta para o neto.
Estes trechos, entretanto, são alívios em meio a uma cidade que tenta sufocar as suas origens. A Manaus fotografada por Barbara Alvarez (“Que Horas Ela Volta?”) não possui a luminosidade do sol de 40 graus, mas, sim da escuridão triste e melancólica da alma de Justino, um ser que sabe está sendo caçado por ser quem é. Reflete indiretamente também a alma de uma cidade situada no meio da Floresta Amazônica, mas, de uma arborização pífia, e envergonhada por sua origem, querendo mais se espelhar em Rio, São Paulo ou Miami do que olhar para si própria com todas as suas potências e problemáticas. Ainda sim o contraste do meio urbano em torno da floresta guarda esta aura mítica que insiste ainda em aparecer e o trabalho de som sintetiza este duelo constante de Breno Furtado e Felippe Mussel como na marcante abertura de “A Febre”, um dos momentos mais simbólicos do cinema brasileiro dos últimos anos.
Ganhador do Festival de Brasília 2019, “A Febre” surpreende por ser o primeiro trabalho em longas de ficção de Maya Da-Rin, afinal, a consistência narrativa e simbólica que apresenta durante os 98 minutos do filme não é alcançada por muitos diretores com estrada mais longa. A produção ainda ganha mais importância no momento em que, mais uma vez, os indígenas encaram um projeto de destruição do governo Bolsonaro e são dizimados pela COVID-19.
Mesmo assim e até por isso, a luta não para.