Nos últimos anos, o cinema de horror nacional experimenta uma fase promissora, deixando os fãs alegres com a boa safra de filmes lançados no gênero considerado o mais maldito da sétima arte. As produções nacionais têm extraído o que de melhor há para se tirar do gênero, muitas vezes se reinventando, refletindo e propondo novas saídas e soluções para propostas inovadoras.
Se por um lado, partes destas produções têm acertado em discutir temáticas sociais relevantes a partir de questões culturais do país, no intuito de não se preocuparem em imitar os produtos americanos, pelo outro as produções que flertam com temáticas voltadas para o terror sobrenatural tem exagerado na reverencia a esses trabalhos estrangeiros.
Tirando o correto O Caseiro – que eu reconheço que tem diversas falhas, ainda que ache charmoso o modo que ele conta a sua história fantasmagórica – a grande maioria de filmes que tentaram o corte entre o psicológico-sobrenatural como são os casos de Isolados, O Rastro e o Diabo Mora Aqui naufragaram feio nas suas propostas. Curiosamente, são trabalhos que esteticamente possuem um grau refinado na elaboração visual do terror por intermédio da composição de imagens, ambientação, som e fotografia, mas que, no geral, acabam por desperdiçar as boas premissas das quais suas histórias partem.
O Juízo de Andrucha Waddington é mais uma produção a se enquadrar neste perfil. Tão no piloto automático em trabalhar os elementos de suspense e terror do seu material que a produção nacional se torna uma redundância de clichês sobrenaturais já vistas em abundância nos filmes americanos de assombrações. No enredo, Augusto Menezes (Felipe Camargo) se muda para uma propriedade isolada no meio do mato herdada do seu falecido pai – uma fazenda no estilo colonial – com a mulher, Tereza (Carol Castro), e o filho, Marinho (Joaquim Torres Waddington). A família tenta fugir da vida urbana e do alcoolismo de Augusto que praticamente gerou um racha emocional na relação familiar. A propriedade – uma velha casa decrépita – carrega uma maldição ligada ao avô de Augusto que traiu o escravo Couraça (o cantor Criolo) e foi responsável pelo seu assassinato e da sua filha Ana (Kênia Bárbara).
A falta de uma identidade narrativa
Nota-se que O Juízo é um produto cinematográfico do filme “feito em família”: Andrucha dirige, o roteiro é de responsabilidade da sua esposa, a atriz Fernanda Torres (sua estreia no cinema como roteirista), o filho do casal é um dos protagonistas e a matriarca da família, uma das maiores autarquias do cinema nacional, Fernanda Montenegro tem uma participação pequena mais importante dentro do longa-metragem.
Este contexto familiar do lado de “fora” do filme com certeza estimulou Andrucha e Fernanda a enveredarem o norte conceitual de O Juízo pelo horror psicológico familiar. Há diversas reminiscências dentro da trama que fazem referência a três obras clássicas que reúnem as principais idéias do trabalho aqui em questão: Da casa assombrada envolta por fantasmas e um mistério em relação ao seu passado são citações veladas aos Os Inocentes e Os Outros; Da pessoa que enlouquece em razão da sua instabilidade emocional e de seus vícios é uma clara referência a O Iluminado – Augusto sofre do mesmo problema de alcoolismo que Jack Torrence tinha na obra de Kubrick, se tornando uma ameaça para a esposa e filho.
O problema principal de O Juízo não é copiar estes clássicos para contar sua história e sim trabalhar todas estas questões de forma simplória e banal. Tudo leva o filme a cair nas armadilhas clichês, direcionando o público para saídas falsas – uma delas presentes na trama vaga e muito mal explorada pelo roteiro que liga Augusto e Couraça em um contexto relacional que transita entre o sobrenatural e o espiritismo – que nada acrescentam a narrativa e sim a engessam.
É uma pena porque a trama do filme propicia desdobramentos interessantes. Temos o comentário social sobre a reparação da culpa frente à escravidão; o horror ambíguo que deixa em dúvida se os mistérios são provenientes da esfera sobrenatural ou da psique humana fragmentada de Augusto, desenvolvida a partir do seu alcoolismo e da sua doença mental herdada (o seu pai é esquizofrênico e morreu em decorrência da doença); o conceito do espiritismo ligado a questão do carma presente em Couraça e na sua busca de justiça pelo o que aconteceu a ele e sua filha em decorrência das ações da família de Augusto.
O resultado é que Andrucha não transforma estes desdobramentos citados acima em algo além do genérico ou que apresente uma densidade maior ao contexto dramático da sua história. O viés de suspense se arrasta pela falta de ritmo do longa-metragem, o horror e seus vários clichês são pouco atrativos na escalada de angústia e tensão que se pede em filmes deste gênero. Em outras palavras, falta uma identidade narrativa própria para O Juízo.
Belos planos atmosféricos para compensar a falta de densidade do roteiro
Pelo menos no campo visual não faltam elogios ao projeto. Andrucha compõe belos planos atmosféricos que se apóiam em tomadas aéreas para deixar a fazenda isolada no meio de florestas e cachoeiras, criando um cenário remoto que mistura desolação, medo e incômodo, deixando o espectador sentir, que não há qualquer tipo de possibilidade de ajuda próxima, para a família de Augusto. Ele também utiliza a fotografia acinzentada, suja e pesada de Azul Serra para deixar a ambientação noturna da casa sombria, iluminada apenas por velas, cenário ideal para servir de lar para fantasmas como os clássicos filmes ingleses da década de 50 e 60 souberam tão bem administrar.
As interpretações contidas do elenco são também outra virtude do longa-metragem principalmente as participações inspiradas de Lima Duarte e Fernanda Montenegro, que fazem um casal de irmãos mediúnico e dão dignidade para uma das subtramas mais rasteiras do filme. Mesmo com uma personagem muito mal tratada pelo roteiro, Carol Castro se impõe em cena e faz um contraponto interessante da racionalidade e sensatez feminina frente à insanidade do marido vivido por Felipe Camargo.
A verdade é que ao transitar entre o filme sobre fantasmas, o suspense psicológico sobrenatural e o drama familiar que versa sobre vingança e o legado colonial, O Juízo se vê prejudicado pela sua falta de foco. Suas resoluções anticlimáticas e a preguiça como o seu roteiro abordam o suspense e as tensões, deixam o público sempre à deriva. Ainda que exista uma força visual que ajude a minimizar as graves imperfeições do filme, O Juízo sofre pela superficialidade em como lida com suas temáticas. Falha naquilo que um filme de suspense e terror sempre deve priorizar: a criatividade. Aqui a imitação simplesmente barata é que dita as regras, infelizmente.