Parece coisa saída de alguma comédia, não é mesmo? Quem acreditaria, alguns anos atrás, se alguém dissesse que em 2016 um dos candidatos disputando a eleição presidencial dos Estados Unidos seria o Donald Trump? Aquele bilionário do cabelo estranhíssimo, dono das organizações Trump, que na década passada se tornou uma figura conhecida na TV por causa do programa The Apprentice, no qual ele dizia o bordão “Você está demitido!” para os candidatos a um cargo numa das suas empresas. O discípulo dele, Roberto Justus, fez de O Aprendiz um programa de sucesso aqui também, com direito ao uso do mesmo bordão.

Vamos relembrar as controvérsias recentes do dono de hotéis, cassinos e até do Miss Universo, Donald Trump… Durante a campanha das eleições primárias – nos quais os candidatos de cada partido disputam entre si para ver quem, enfim, será o candidato à presidência – Trump falou muita besteira. Atacou adversários e jornalistas, disse que ia construir um muro para manter os imigrantes vindos do México  fora dos Estados Unidos, e se mostrou um conservador de marca maior. Apoia a tortura contra os inimigos dos EUA, é contra aborto e controle de armas e não acredita no aquecimento global. Também criticou o plano de assistência de saúde do presidente Barack Obama – o polêmico “Obamacare” – e é um defensor do “livre mercado”: segundo ele, o Estado não deve interferir na economia, deixando as leis de oferta e demanda regularem as atividades de forma natural. O slogan da campanha dele é “Fazendo a América grande outra vez”.

Donald Trump vai disputar a eleição presidencial contra Hillary Clinton, esposa do ex-presidente Bill Clinton. Ela disputará pelo Partido Democrata e ele, pelo Republicano. O estereótipo dos Republicanos é aquele no qual Trump se encaixa como uma luva: conservador, consciente do poder do país (bélico, sobretudo) e contrário a qualquer forma de interferência estatal na vida das pessoas. Já o estereótipo dos Democratas é o Obama: progressista e pelo menos um pouquinho mais preocupado com questões sociais. Como bem aprendemos com a política, às vezes os estereótipos não se comprovam na realidade, às vezes sim.

Por tudo que fez e falou, assusta a ideia de que Trump possa vir a ser presidente. Mas este é um site de cinema, certo? Bem, Trump apareceu em filmes, fazendo pontas como ele mesmo em produções como Esqueceram de Mim 2: Perdido em Nova York (1992), Celebridades (1998) e Zoolander (2001), além das séries Um Maluco no Pedaço e Sex and the City. Ele já era uma figura pop antes mesmo de se tornar candidato. O cinema e a política sempre andaram juntos, por isso vamos relembrar alguns casos em que um ajudou a compreender o outro.


Filmes políticos: Guerras e os anos 1960

O cinema, como a arte nascida do tumultuado século XX, caminhou junto com a evolução política do mundo desde o seu início. Os filmes sempre foram importantes peças de propaganda de governos – como os trabalhos de Sergei Eisenstein na Rússia ou de Leni Riefenstahl na Alemanha, sempre visando mostrar a revolução socialista ou o nazismo como gloriosos – ou poderosas formas de crítica política.

Peguemos a Segunda Guerra Mundial como exemplo. Ela até hoje é fonte de inspiração para roteiristas e cineastas. Enquanto a guerra estava acontecendo, muitos filmes apresentaram um tom ufanista, enfatizando como era importante o combate à Alemanha nazista – quem se esquece, por exemplo, da cena do clássico Casablanca (1942) em que os frequentadores do bar do Rick (Humphrey Bogart) começam a cantar a Marselhesa, o hino francês, em frente aos oficiais nazistas? Mesmo anos depois do conflito, filmes ainda foram feitos com a intenção de louvar os esforços das suas respectivas pátrias. Um exemplo, na Inglaterra, foi A Batalha Britânica (1966), do recém-falecido diretor Guy Hamilton, que mostra como foi heroica e vitoriosa a batalha aérea da Royal Air Force contra a Luftwaffe de Hitler.

Mas houve espaço para mostrar o trauma da guerra sobre a sociedade. Tomemos o exemplo da Itália. Dentre os cineastas neo-realistas, um dos mais engajados era Roberto Rossellini, que fez a trilogia Roma, Cidade Aberta (1945), Paisà (1946) e Alemanha, Ano Zero (1948). Os dois primeiros enfocavam o terror que o fascismo de Mussolini e o nazismo de Hitler exerceram sobre o país, com cenas filmadas nas ruas e sem atores profissionais em muitas cenas, e o último foi rodado nas ruas de uma Berlim em ruínas, constituindo-se num registro histórico da destruição, tanto física quanto espiritual que se abateu sobre o país e a Europa como um todo.

A tumultuada década de 1960 trouxe um grande número de filmes engajados politicamente, em vários países. No Brasil, o Cinema Novo desafiava a ditadura instaurada no país. Glauber Rocha, por exemplo, partiu para a alegoria e crítica mordaz e fez o cada vez mais atual Terra em Transe (1967). Até nomes ao largo do movimento enfocavam mudanças sociais em seus trabalhos – um exemplo foi o de Luís Sérgio Person e seu São Paulo Sociedade Anônima (1965). Na França, A Batalha de Argel (1966) tornou-se um clássico ao enfocar as ações terroristas dos argelinos contra o colonialismo francês. O filme de Gillo Pontecorvo ainda hoje é eletrizante e estudado por causa do retrato das atividades terroristas. E o diretor Jean-Luc Godard, um dos maiores nomes da Nouvelle Vague, assumiu uma posição cada vez mais politizada em seus filmes a partir de Made in U.S.A. (1966) e A Chinesa (1967), criticando a Guerra do Vietnã, o imperialismo e a sociedade burguesa do seu país.

Não que ele já não fizesse isso antes, mas a partir dessas obras seu cinema ficou cada vez mais engajado e a favor dos ideais marxistas, embora mesmo em A Chinesa ele se mostre na dúvida, ao final, sobre a viabilidade da ideologia comunista. Logo em seguida, Weekend à Francesa (1967) foi um alegórico “tapa na cara” do país, e poucos anos depois ele se reuniria com a “maldita” Jane Fonda em Tudo Vai Bem (1972), outro petardo satírico contra a sociedade de consumo. Jane foi criticada nos EUA por ser abertamente contra a Guerra do Vietnã, o que chegou a atrapalhar sua carreira. Godard, também, viu o público dos seus filmes diminuir por causa dessa guinada – não que isso pareça importar muito para ele.

A Guerra do Vietnã também coincidiu com o movimento da Nova Hollywood nos EUA, quando jovens cineastas conseguiram inserir críticas sociais e políticas nos seus filmes e os estúdios, desesperados para reconquistar o público, os deixavam fazer isso. Foi a época mais politizada do cinema americano: Mike Nichols satirizou como nunca o vazio da sociedade que tem tudo em A Primeira Noite de um Homem (1967); Robert Altman demoliu qualquer ideal de sentido na guerra, e de quebra ainda fez rir, com M.A.S.H. (1970); e Francis Ford Coppola fez um paralelo entre a história do seu país e a do banditismo organizado nos dois O Poderoso Chefão. Mais tarde ele faria também o filme definitivo sobre a Guerra do Vietnã – e sobre a guerra em geral – com Apocalypse Now (1979). Pouco antes, O Franco Atirador (1978), de Michael Cimino, tocou pela primeira vez nos horrores da guerra pelo ponto de vista americano, e Todos os Homens do Presidente (1976), de Alan J. Pakula, dramatizou a investigação jornalística que levou à renuncia do presidente Richard Nixon em 1974 – Nixon foi pego grampeando seus concorrentes do Partido Democrata e fazendo uso de fundos do governo para montar uma verdadeira rede de espionagem.


Hollywood a partir dos anos 1980: Patriotismo e Oliver Stone

Porém, a partir dos anos 1980, Hollywood perderia esse viés crítico tão intenso. O início da era dos blockbusters trouxe filmes mais patrioteiros que faziam o público delirar com o poderio e os ideais dos EUA: filmes como Top Gun: Ases Indomáveis (1986) e Rambo 2: A Missão (1985). Aliás, a franquia Rambo demonstrou como o país se tornou mais conservador sob o governo do republicano Ronald Reagan: o primeiro filme, de 1982, é um drama sombrio e crítico sobre como os veteranos do Vietnã foram recebidos pelo país; já o segundo é um filme de ação pura no qual o personagem de Sylvester Stallone volta ao Vietnã e vence a guerra perdida na década anterior. Chuck Norris foi outro astro da ação que se deu bem com filmes patrióticos nessa época, e Amanhecer Violento (1984) era tão pró-USA que mostrava a juventude do país combatendo uma invasão comunista.

Um dos poucos cineastas hollywoodianos da época a abraçar uma posição de crítica política bem pronunciada foi Oliver Stone. Ele conheceu o sucesso e a aclamação do Oscar com Platoon (1986), baseado nas suas experiências como veterano do Vietnã, e mais tarde criticou abertamente a máquina de guerra, a economia e o imperialismo americano em obras como Wall Street: Poder e Cobiça (1987), Nascido em 4 de Julho (1989) e Entre o Céu e a Terra (1993). Stone também abordou o assassinato do presidente John Kennedy em JFK: A Pergunta que Não Quer Calar (1991) e dramatizou a vida do controverso presidente em Nixon (1995). Mais recentemente, o diretor tentou retomar essa veia política, mas tropeçou com o dramalhão de As Torres Gêmeas (2006) e acertou moderadamente com a sátira W. (2008), sobre o presidente George W. Bush – apesar de mediano, é um filme que explica com uma visão cortante os verdadeiros motivos da invasão ao Iraque, e só por isso merece ser visto.

Filmes de esquerda e de direita: O poder da imagem

Stone sempre se mostrou um cineasta mais à esquerda do espectro político, ainda mais na Hollywood geralmente “apolítica”, e nisso ele se junta a nomes como o grego Costa Gavras, diretor do clássico Z (1969) e de outras obras bastante engajadas, e ao inglês Ken Loach, recente vencedor do prêmio de Cannes por I, Daniel Blake, entre outros. Mas não são só cineastas de esquerda que fazem filmes. Recentemente, Sniper Americano (2014), de Clint Eastwood (ele próprio um republicano, e já foi prefeito), fez um enorme sucesso de bilheteria (e causou polêmica) ao apresentar a história do maior atirador das Forças Especiais americanas com forte tom de patriotismo, quase como uma volta ao espírito dos anos 1980.

Sniper Americano, no entanto, escancara um problema que não vem de hoje: o público em geral não assiste a filmes com fortes tons politizados, a não ser que venham embalados em cenas de ação como no longa de Eastwood, ou com outros atrativos. E nem com eles a audiência é garantida: filmes como Zona Verde (2010), de Paul Greengrass, e Tudo pelo Poder (2011), de George Clooney, falharam em atrair público mesmo dispondo de ação e muitos astros no elenco. Talvez isso ajude a explicar porque figuras como Trump emplacam junto a uma parte do eleitorado: muita gente não gosta de discutir política, ou não acha um ponto de entrada no assunto, e ele chega dizendo coisas simples que as pessoas querem ouvir, embora muitas delas não façam sentido prático. No fundo é um populista (nós, brasileiros, conhecemos o tipo) e projeta uma imagem de sucesso. Essa imagem, no entanto, possui furos: há alguns meses o comediante John Oliver satirizou a figura de Trump no seu ótimo programa da HBO e demoliu vários mitos associados ao bilionário – caso o leitor entenda inglês, recomendo bastante, assista:

De viver da imagem, Trump parece entender. E o cinema, claro, serve para fazer reflexões sobre as imagens. Existem muitos filmes capazes de nos ajudar a compreender a situação política, não apenas do nosso país, mas do mundo também, e esse artigo, mesmo extenso, apenas começa a arranhar a superfície. O cinema pode ser usado tanto para despertar nosso senso crítico quanto para adormecê-lo: cabe ao espectador mergulhar nele e formar suas próprias conclusões, por isso recomendo que vejam todos os filmes mencionados aqui. É possível encontrar sentido político até onde menos se espera: quem assistir ao cultuado Eles Vivem (1989), do diretor John Carpenter, não o esquecerá, ou à sua visão questionadora da sociedade, tão cedo. Trata-se de uma mistura de ficção-científica, terror e comédia com forte teor político. No filme, um operário braçal encontra um par de óculos escuros diferentes e passa a observar o mundo dominado por alienígenas (a elite) e o verdadeiro sentido das mensagens da sociedade de consumo às quais somos bombardeados constantemente.

Fico imaginando o que o herói de Carpenter veria se colocasse os óculos e desse uma olhada em Donald Trump. Questione tudo, parece ser um bom conselho deixado pelo mestre do terror, e é saudável aplicá-lo tanto aos políticos da vida real quanto aos filmes que vemos.