A suposta aposentadoria de Steven Soderbergh deve ser uma mais curtas da história: desde 2013, quando anunciou esse plano, o cineasta já desistiu e emplacou, um atrás do outro, filmes como Logan Lucky (2017), Unsane (2018) e, agora, seu mais recente projeto, High Flying Bird, desta vez com distribuição da Netflix – isso tudo enquanto seu próximo filme, The Laundromat, já se encontra em fase de pós-produção. Nada mal para um diretor que trabalha em ritmo quase industrial, mas sempre passeando por diversos gêneros, estruturas e técnicas fílmicas, ao passo que mantém resultados consistentes em pelo menos boa parte do tempo.

Afinal de contas, Soderbergh nem de longe parece ser um autor preso a um tipo de cinema específico; muito pelo contrário, a cada projeto, fica mais claro o modo como sua mente pensa o cinema de uma maneira abrangente e se interessa em experimentar e arriscar. Esse interesse se repete em High Flying Bird, desde a técnica utilizada – assim como em Unsane, o longa foi filmado com um iPhone – até a narrativa que, ao contrário do que seu trailer e o pôster podem sugerir, passa longe de um mero “filme de esporte”.

Assumindo a mesma atmosfera de A Rede Social, por exemplo, High Flying Bird já dá a largada com um diálogo afiado entre o agente de atletas Ray (André Holland), que fala tão rápido quanto o Zuckerberg encarnado por Jesse Eisenberg, e um de seus clientes, o promissor jogador de basquete Eric (Melvin Gregg), enquadrados em ângulos que se tornam mais curiosos à medida que a conversa prossegue e embalados por cortes mais rápidos. Logo, não espere por nenhuma “enterrada” histórica: o basquete é apenas o pano de fundo para a trama, que se concentra muito mais em ser um daqueles filmes em que personagens profundamente inteligentes mantêm longas conversas com subtextos, do tipo que inclusive poderia ter saído da mente de um Aaron Sorkin, mas aqui leva a assinatura do autor de Moonlight, Tarell Alvin McCraney.

Em meio a um lockout da NBA, inspirado no que aconteceu de fato em 2011, quando um impasse trabalhista interrompeu o pagamento de salários, negociações e fechamento de contratos, bem como atrasou o início da temporada, Ray se vê com a missão de manter Eric como um jogador relevante na indústria, além de assumir para si um objetivo que vai além disso: arranjar uma maneira de abalar o próprio sistema.

Assim, expondo a maneira como os cartolas e chefões da mídia e das ligas esportivas se aproveitam da ingenuidade de atletas, principalmente jovens e negros, seduzidos pela chance de uma grande carreira nas quadras, Soderbergh intercala sua trama com depoimentos em preto-e-branco de jogadores reais que ajudam a situar mesmo o espectador nem um pouco familiarizado com esse universo.

Enquanto isso, haja papos quase teatrais entre os personagens, com direito a paralelos sobre escravidão e reflexões sobre o sistema. Essa é a oportunidade para André Holland se destacar, encarnando um protagonista determinado com um espírito benevolente, e que mesmo nos momentos de silêncio, parece estar sempre com a mente a todo vapor. Ao seu lado, todo o resto do elenco também funciona de maneira bem competente, desde Zazie Beetz, conhecida por Deadpool 2, ao demonstrar uma sagacidade e modernidade que se contrapõem e complementam Ray ao mesmo tempo, até pontas menores de Zachary Quinto e Kyle MacLachlan, que aparentemente se tornou uma figura sinistra em qualquer coisa que faça depois de Twin Peaks.

No geral, High Flying Bird se constrói como um filme simples, mas eficiente, com alguns problemas de ritmo, mas que se beneficia principalmente da direção e montagem ágeis de Steven Soderbergh. Embora não chegue ao final climático que parece anunciar em seu meio, o longa ainda rende um terceiro ato à la filme de roubo, em que o diretor prefere mostrar as peças do plano de um personagem já em ação do que o plano prévio que levou a esse resultado – o que não deveria ser surpresa, já que este é o mesmo homem que comandou a franquia Onze Homens e um Segredo. Assim, tal como seus personagens decidem que o poder pertence a eles e eles precisam reassumir as rédeas do sistema, Soderbergh também, a seu modo, toma mais uma vez os meios a seu favor para experimentar e brincar no playground cinematográfico.