AVISO: Este texto conterá SPOILERS do filme Nós. Recomenda-se ler apenas após ver o filme.

O filósofo francês Jean-Paul Sartre cunhou a frase “O inferno são os outros”. Parece que o filme Nós, do roteirista/diretor Jordan Peele, poderia adicionar a esta famosa citação o seguinte complemento: “E pelo visto, cada um de nós também”.

Depois de ver sua carreira pegar um gigantesco impulso com o sucesso da sua estreia como diretor, Corra! (2017), que usava um envelope de filme de terror fantástico para abordar o horror da experiência de ser negro na sociedade norte-americana, Peele retorna com Nós, um filme ainda mais ambicioso e com subtexto até mais amplo.

Em Nós, acompanhamos uma família afro-americana e bem de vida que está tirando férias, relaxando perto da praia. Porém, logo na primeira noite na casa de veraneio, eles são atacados… Por quatro estranhos desconhecidos usando macacões vermelhos e portando tesouras afiadas. Eles são também praticamente iguais aos membros da família. Ou quase. No decorrer do filme vemos os personagens tentando salvar suas vidas, ao mesmo tempo em que presenciam que o estranho fenômeno não está acontecendo apenas ali, nem está acontecendo apenas com eles…

Peele está disposto a realmente assustar o espectador – Corra!, por melhor que fosse, não era realmente muito assustador – e a colocá-lo fora da zona de conforto com cenas esquisitas e situações bizarras. É um filme também, estranhamente, bem engraçado – não podemos esquecer que o diretor veio do mundo da comédia. O humor bizarro é mais uma característica que serve para ampliar a experiência e dar suporte à ideia original de Peele. Uma ideia que é bem simples, na verdade: O que aconteceria se você, de repente, começasse a ser perseguido e atacado por uma versão diferente de si mesmo? Essa ideia, tão simples, dá margem a várias leituras.

O que representam os “acorrentados”, afinal?

Peele faz uso aqui do mito do “doppelgänger”, a ideia de que cada um de nós possui um duplo, que inclusive já rendeu obras como Possessão (1981), A Dupla Vida de Veronique (1991), Cisne Negro (2010), O Homem Duplicado (2014), a série Twin Peaks: O Retorno (2017)… Trata-se de uma noção sempre perturbadora, que cineastas já exploraram com muita competência. Em Nós, Peele nos fornece poucas informações sobre os “acorrentados”, deixando muito para a imaginação do espectador.

E aí vem o “pulo do gato”: em dado momento, a versão acorrentada da mãe da família, Adelaide, a protagonista do filme vivida pela fantástica Lupita Nyong’o – sério, o que ela faz nesse filme só com o rosto é digno de prêmios – diz que eles “são americanos”. Apenas essa frase é suficiente para Peele inserir um componente social na sua narrativa de horror, sem precisar martelar isso para o público. Esse componente vai aliá-lo, por exemplo, aos filmes de zumbi de George Romero. Nos filmes do velho mestre do terror, a luta entre vivos e mortos-vivos representava o fim de uma norma social e o começo da outra, justamente o que ocorre em Nós.

Ao final do filme de Peele, o ataque dos acorrentados já adquiriu dimensões apocalípticas, como geralmente ocorre no subgênero dos zumbis. É o fim dos Estados Unidos, causado por uma classe de cidadãos que um dia cansou de viver no submundo e resolveu ascender à superfície, substituindo, de maneira violenta, os que estavam acima. É um filme sobre revolução, que curiosamente começa nos EUA da era Reagan dos anos 1980 e termina no país de Trump.

Em uma nota ainda mais poderosa, os minutos finais do filme revelam que foi a Adelaide da superfície, não a sua versão “dupla”, quem causou a revolução, pois as meninas realmente foram trocadas durante a cena da sala dos espelhos no início da narrativa. Já a sua versão dupla, mesmo com alguns problemas emocionais, viveu a boa vida por anos. Não existe mais divisão entre “nós” e “eles”. Nós somos eles. Inclusive, essa era a mesma frase que era usada no final do remake de A Noite dos Mortos-Vivos (1990), roteirizado por Romero e dirigido por seu amigo Tom Savini, o mago da maquiagem. Quando Romero faleceu em 2017, Jordan Peele relembrou no twitter que o cineasta foi o primeiro a escalar um ator negro num filme de terror na versão original de A Noite dos Mortos Vivos, em 1968. A conexão é clara: Peele vem criando experiências de gênero para entreter o espectador, mas trabalhando isso junto com comentários sociais afiados como as tesouras dos acorrentados.

Como extrapolar isso para além de uma reflexão sobre os EUA?

Bem, todos “nós” (trocadilho intencional) escondemos nosso duplo das pessoas civilizadas – ultimamente, parece que também as redes sociais têm servido para libertar os acorrentados e trazê-los para o mundo real para criar conflitos. É interessante imaginar como seria uma versão brasileira de Nós, ainda mais na nossa era de radicalismos exacerbados e civilidade muito frágil.

O fato é que os duplos também existem aqui, e essa é a força do conceito da narrativa de Jordan Peele: eles são universais e ambíguos o bastante para permitir diferentes interpretações. E como elementos de gênero, são perfeitos: Servem para falar sobre o lado sombrio do ser humano, a matéria-prima os filmes de terror.

O inferno somos nós, de fato.