• “Nós” (Us) (2019). Direção: Jordan Peele. Elenco: Lupita Nyong´o, Elisabeth Moss, Winston Duke, Anna Diop.

Nos filmes de Spike Lee há sempre um personagem que, ao olhar para a câmera, solta um sonoro “acorde!”. De uns cincos anos para cá, o cinema de horror americano acordou para a realidade e rompeu com um comportamento padronizado presente na maioria dos seus filmes – o terror clichê de provocar sustos baratos na plateia – para explorar novas histórias e conhecimentos psicossocioculturais através de signos inseridos nos textos, para mexer com a mente do espectador e instigar o medo.

Os tabus foram quebrados, as cartas jogadas na mesa e o cinema de horror levou o seu público não apenas acordar como se libertar para a realidade que o cerca. Nós, novo filme de Jordan Peele depois do fenômeno Corra! resume muito bem isso. Se as expectativas eram poderosas, com todos os olhos voltados para o diretor e o seu filme seguinte pós-Oscar (Corra! venceu na categoria de melhor roteiro), o segundo longa-metragem de Peele é libertador no sentido mais abrangente de cinema: Entre excentricidades, bizarrices e loucuras, o filme é um delicioso (e assustador) conto de horror social.

Peele faz um terror mais direto do que seu antecessor, porém, mais implícito na sua crítica social – repleta de simbolismo – que combina lindamente o horror e a comédia, alinhada a atuação poderosa de Lupita Nyong´o. Em Nós o jovem cineasta apresenta aquilo que um bom horror moderno deve oferecer: um thriller psicológico, longe das diretrizes clássicas dos jumpscare, com visão própria para lidar com temas sociais por meio de uma análise semiótica que pontua desde as referências e homenagens à cultura pop cinematográfica – com uma consistência e originalidade de deixar Stranger Things a ver navios – até uma abordagem que condiciona elementos sobrenaturais para discutir os nossos medos mais íntimos nas entrelinhas. É admirável a inteligência do diretor em construir o suspense e mantê-lo sempre ligado a um senso de humor que incomoda e deixa o público desconfortável, por meio de bons truques de direção e fórmulas de roteiro.

Nós Somos os Americanos – A sátira social do horror contemporâneo

Em Nós acompanhamos a família Wilson composta pela mãe Adelaide (Lupita), o pai Gabe (Winston Duke) e os dois filhos do casal, a menina (Shahadi Wright) e o menino (Evan Alex). A família encontra-se em férias de verão pela praia de Santa Cruz, mesmo local que Adelaide há trinta anos passou por um grande trauma infantil. O que parecia perfeito se torna um pesadelo quando estranhos se aproximam da casa de verão da família. Falar mais da trama de Nós é roubar do espectador, aquilo que ele tem de melhor: seus mistérios.

Peele hoje é um dos melhores cineastas com apreço pela estranheza com uma habilidade notável em brincar com nosso imaginário. A frase dita por um dos personagens – em forma de sussurro – “Nós Somos os Americanos” revela o seu olhar crítico para a sociedade americana, como o próprio título original sugere. Enquanto Corra! voltava seu discurso para uma visão geral da sociedade em relação ao seu racismo, Nós o dimensiona para a campo subjetivo das pessoas, de como encararmos nossos demônios individuais e somos capazes no coletivo, de externalizar nossas maldades É uma crítica aos “apontadores de dedo”- os chatos de galochas da vida real e das redes sociais-, com ramificações psicanalíticas que refletem ou espelham – o espelho é um dos vários signos que exercem força no filme –  como a nossa sociedade de hoje direciona suas ansiedades para o “outro”, apenas para esconder seus medos e as suas culpas. É quase como o retorno do reprimido, o lado sombrio que temos e que estabelecemos através de uma relação parasitária na vida social.

De certa maneira, Peele transforma Nós numa fábula moral moderna sobre a divisão e xenofobia social tão em voga em nossa sociedade. Há questões filosóficas de mostrar que o verdadeiro inferno não está no coletivo e sim em nós mesmos. É deliciosa a agilidade como o diretor permite realizarmos no primeiro ato do filme, um profundo investimento emocional com os personagens para depois sermos jogados juntos com os mesmos dentro de uma narrativa que mergulha na metade do segundo ato em um espiral de loucura. Dificilmente você vai encontrar um horror divertido, instigante e assustador como Nós se propõe.

As referências a serviço da maturidade do seu realizador

Muitas vezes, reclamamos que o Oscar não tem validade nenhuma. Nós é a prova da serventia do careca dourado. A estatueta permitiu Peele galgar sonhos maiores e ter total liberdade sobre o seu novo filme. É notório que ele valoriza mais a questão técnica de gênero, com uma direção mais sofisticada em estilo e narrativa para traçar a sua atmosfera de horror sobre a dualidade do sonho americano.

Isso facilmente observado na abertura do filme, na qual ele introduz um segmento arrepiante dentro de um parque de diversões em um ritmo gélido e uma câmera inventiva de panorâmicas estáticas que estende ao máximo, a tensão para deixar o público na ponta da cadeira à espera que algo de ruim venha acontecer. Esta contextualização de imagens, signos e demais informes é muito bem explorada pela fotografia de Mike Gioulakis mergulhada em sombras torturantes e a genial trilha sonora de Michael Abels que evoca o estilo tétrico (de cordas graves) da égide hitchockiana do maestro Bernard Herman.

Falado em Hitchcock é difícil não se lembrar do cineasta inglês e sua obra Os Pássaros na forma como Peele cadência seu suspense – seguindo a fórmula de ameaça repentina do careca inglês – gradativamente, amparado por diversas referências cinematográficas: a seqüência da praia guarda vários fanservices a mesma cena (e mesmo cenário) de Tubarão de Spielberg; Os grunhidos guturais e estranhos de algumas personagens remetem a Invasores de Corpos de Philip Kaufman; A violência que invade os lares familiares impulsionam lembranças para o francês Eles e o clássico Violência Gratuita de Michael Haneke; O tom de sátira (O Despertar dos Mortos-Vivos) e o estudo psicossocial da sociedade (A Noite dos Mortos-Vivos) funcionam como homenagens a George Romero. Saem os zumbis e entram as criaturas do mundo doppelgänger como versões assustadoras de nós mesmos.

Neste mar de referências, o cineasta introduz diversos significantes e significados, deixando para o público decifrar o que cada signo representa – os coelhos e a representação da tesoura dão pano para mangas nas discussões das mesas de bares – o que dá uma força muito boa para o filme adornar o seu pesadelo social e permitir o público decidir, por si mesmo, o que é tão assustador nas visões espectrais que elas trazem.

Um furacão chamado Lupita e os gargalos do roteiro

Desde que ganhou o Oscar de atriz coadjuvante por 12 Anos de Escravidão que Lupita merecia um papel de destaque em Hollywood. Em Nós temos sua consagração definitiva por criar duas personalidades completamente diferentes, com peculiaridades tão fortes que deixam tantas outras possibilidades de análises aberta para os mistérios do filme. Sua convicção em transpor a fisicalidade da sua persona sombria é simultaneamente envolvente como alarmante. A voz que a atriz estabelece para sua persona Red é de dar calafrios, sendo que o medo que pulsa em Nós emana, em vários momentos, da interpretação da própria atriz.

O resto do elenco não decepciona: Elisabeth Moss tem seus grandes momentos no segundo ato, Winston Duke é responsável pelas tiradas e momentos mais divertidos do filme, servindo de alívio cômico para quebrar a tensão e o peso da narrativa. O elenco de crianças segue a mesma vibe da eficiência. Infelizmente Nós tem certos gargalos no seu roteiro, perdendo parte da sua desenvoltura narrativa entre o final do segundo ato e início do último. O grande problema é o texto querer explicar racionalmente toda sua proposta sobrenatural, ficando a nítida sensação que o estilo didático de “ser Christopher Nolan” faz Peele passar um pouco do ponto adequado, questão que fica evidente no seu plot-twist, que mesmo interessante, perde parte da sua força pela construção irregular. O grande mistério Hitchockiano do filme se esvai em um último ato que expõe um monólogo perdido em um falatório desnecessário.

‘Nós’ e a sua polivalência como horror social

Mesmo com este desnivelamento na parte final, Nós mostra a força da polivalência de Peele em criar um horror que desafia o espectador a nunca ficar na passividade, que abre inúmeras possibilidades de interpretação, ao mesclar humor e o terror de forma tão inteligente quanto provocativa. Seu estudo sobre o que há de controverso em nós mesmos deixa o longa-metragem como um daqueles episódios exóticos e ótimos de Além da Imaginação.

É um filme que tem elementos cânones dentro do gênero – dificilmente você vai encontrar uma cena de chacina tão deliciosa ao som de Good Vibrations do The Beach Boys como aquiao mesmo tempo em que a sua dualidade em divertir e provocar medo o aproxima de um cinema de entretenimento rápido e divertido, embalado por reflexões sociais e pessoais pertinentes. Neste sentido, Peele segue bem a essência de Spielberg e M.Night Shyamalan de transitar, muito bem, entre a fantasia e a realidade.

É verdade que Nós não é a obra-prima celebrada por muitos, mas apresenta um tecido de horror social de profundo bom gosto, que mostra que ainda há espaços para discussões sociais contemporâneas para os distúrbios da civilização moderna. Serve também de um grande estímulo para que outros cineastas se arrisquem mais e continuem contribuindo para a renovação do gênero. Ao direcionar o seu olhar para os nossos próprios impulsos e medos sociais, Peele se mostra um autor inteligente, que nunca compromete sua visão e eleva o gênero do medo ao patamar que ele merece.