Cate Blanchett: o ideal de atriz de uma geração

Cate Blanchett: o ideal de atriz de uma geração

Os memes da internet até aumentam, mas não inventam: em 2018, uma série de fotos de atrizes, de várias nacionalidades, lançando olhares apaixonados para a australiana Cate Blanchett dão ideia da admiração com que ela é vista entre os pares.

Desde 1998, quando despontou com Elizabeth, Blanchett virou uma espécie de ideal de sua profissão: uma intérprete cujo talento e versatilidade quase infalíveis, além da condução exemplar da carreira, fizeram com que todas as demais atrizes de sua geração (e depois) quisessem ser como ela quando crescessem. Desde Meryl Streep, provavelmente, não vimos tamanha unanimidade.

Claro que esse oba-oba todo traz a inevitável desconfiança: Blanchett é mesmo tudo isso? Não é preguiçoso colocar qualquer pessoa nessa categoria, acima do bem e do mal? E as bombas que ela já estrelou? – deve haver algum embaraço, afinal, ninguém é aquela palavrinha lá em cima, infalível.

No Filmografia de hoje, convido você, queridx leitorx, a  avaliar a qualidade do trabalho de Cate Blanchett pelo único índice confiável que a ciência nos dá: a análise dos fatos. Recompondo a carreira da atriz, podemos pesar na balança os seus méritos e desacertos, e perceber o quão decisiva ela é para a qualidade dos filmes em que participa – e se, afinal, ela faz jus a tantos olhares gloriosos.

 (Não querendo influenciar o seu veredicto, claro, mas, suspeito que, até o fim desse texto, se você topar algum dia com Cate Blanchett na sua frente, seu olhar vai brilhar mais que o de Kristen Stewart)

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Catherine Elise Blanchett nasceu em 1969 na cidade de Melbourne, na Austrália, filha de uma professora e de um oficial da Marinha americano. O pai de Cate faleceu quando ela tinha apenas 10 anos, deixando a June, a mãe, a dura tarefa de educar a futura atriz e os irmãos. A provar que, desde sempre, Blanchett possui aquele brilho especial que todos gostaríamos de ter, ela era conhecida na adolescência por suas posturas discordantes – ela já teve uma fase gótica, uma fase punk, usava roupas masculinas, e chegou até a ostentar o cabelo raspado. Em meio a essas reinvenções, o seu tino para as artes performáticas parecia apenas inevitável.

Depois de começar (tentar, pelo menos) economia e belas-artes na universidade, e de trabalhar num lar para idosos, Blanchett interromperia os estudos para viajar por outros países, num ímpeto, talvez herdado do pai, de se desenraizar. Sua primeira aparição nas telas aconteceria numa dessas viagens – no Egito, de todos os lugares. Produtores de um filme local sobre lutas, Kaboria (1990), perceberam antes de todo mundo a força daquele rosto, daquele olhar, e a escalaram para uma ponta como uma cheerleader americana – é hilário, e facilmente encontrável no YouTube.

Na carreira de Blanchett, Kaboria seria apenas uma bem-vinda (e muito ansiada) ajuda de custo para as viagens, mas Cate retornaria à Austrália decidida a investir a sério na vocação.


Destaque no teatro e os primeiros filmes (1992-1999)

Cate Blanchett se formou no National Institute for Dramatic Art (NIDA), de Sydney, em 1992, o mesmo ano em que ela começaria a impor seu nome no cenário local. Junto a Geoffrey Rush, Richard Roxburgh e Hugo Weaving, ela foi parte de uma geração decisiva de talentos australianos, que ganharia os palcos e os cinemas globais do meio para o fim da década de 1990.

Após várias performances premiadas no teatro australiano, e participações em séries e curtas daquele país, Blanchett seria notada pelo radar de Hollywood. Seu primeiro trabalho uma grande produção foi a participação em Um Canto de Esperança (1997), ao lado de Glenn Close e Frances McDormand. No mesmo ano, ela também ganharia seu primeiro papel como protagonista, no bom drama Oscar e Lucinda, com Ralph Fiennes como par.

Claro que tudo isso foi um mero ensaio para Elizabeth (1998). O cartaz do filme, com o olhar magnético, penetrante, de Blanchett, mostra a força de seu carisma, e antecipa o brilho do que vem pela frente. Sua caracterização da rainha que unificou uma Inglaterra tumultuada por conspirações, de uma convicção e intensidade assustadoras, faria a quase desconhecida de 29 anos virar uma estrela da noite para o dia. Primeira indicação de Blanchett ao Oscar de Melhor Atriz – e um mero prelúdio para a fartura de riquezas que viriam.

No ano seguinte, novos degraus galgados com a versatilidade de seus trabalhos na comédia Alto Controle (1999 – um filme subestimado com John Cusack, Billy Bob Thornton e a também novata Angelina Jolie, que vale redescobrir) e no suspense O Talentoso Ripley (1999), o bom remake de O Sol por Testemunha, ao lado de Matt Damon, Jude Law e Gwyneth Paltrow (até hoje vilanizada por tirar o Oscar daquele ano de Blanchett e Fernanda Montenegro, que pareciam candidatas muito mais óbvias e qualificadas – Blanchett, porém, não teria do que reclamar, como vamos descobrir no tópico seguinte).


Ícone pop: O Senhor dos Anéis e a presença assídua nos Oscars (2000-2008)

O grande sucesso de Elizabeth tornou Blanchett um rosto conhecido dos cinéfilos, mas seu status junto ao público, nessa época, é o que poderíamos chamar de cult. Isso mudaria com estrondo a partir de 2001, quando a trilogia O Senhor dos Anéis (2001-03), de Peter Jackson, começaria a avassalar a cultura pop. Seu papel (pequeno, é verdade) como a elfa misteriosa Galadriel, que tem seu ponto alto na aparição assustadora para Frodo no primeiro filme, fez de Blanchett um rosto finalmente popular, o que, somado ao prestígio artístico conseguido nos últimos trabalhos, faria chover ofertas de trabalho.

E ela não desapontou. Uma enumeração seca, só dos títulos dos trabalhos de Blanchett na década passada, dá ideia da coragem, da multiplicidade, da inteligência e do talento extraordinários da intérprete, além da escolha afiada, sempre movida pelo desafio, de seus papéis: a comédia Vida Bandida (2002 – novamente contracenando com Billy Bob Thornton); o drama de época Paraíso (mesmo ano), com roteiro do grande cineasta polonês Krzysztof Kieślowski e direção do alemão Tom Tykwer; o subestimado western Desaparecidas (2003), ao lado de Tommy Lee Jones; a inclassificável antologia Sobre Café e Cigarros (mesmo ano), do diretor indie por excelência, Jim Jarmusch.

Sua encarnação vívida, enérgica, da grande atriz americana Katharine Hepburn em O Aviador (2004), de Martin Scorsese, finalmente lhe renderia o Oscar protelado naquele inexplicável prêmio de 1999. Blanchett, aliás, seria a primeira intérprete australiana a receber a estatueta de Atriz Coadjuvante. Mas ainda melhor do que o seu retrato de Hepburn é o impressionante desempenho como Tracy, uma ex-dependente de heroína no pesado (e estupendo) drama Sob o Efeito da Água (2004), possivelmente o seu melhor trabalho individual, e onde ela consegue se firmar também como produtora (ao lado do marido Andrew Upton, com quem mantém uma fecunda parceria familiar e profissional desde 1997).

2006 trouxe novas obras de impacto: a sensível parábola global de Babel, do diretor mexicano Alejandro González Iñarritú, indicada a vários Oscars, e onde ela faz par com Brad Pitt; e o thriller ambientado na 2ª Guerra Mundial O Segredo de Berlim, de Steven Soderbergh, desta vez ao lado de George Clooney. Mas seu melhor trabalho daquele ano tem de ser Notas sobre um Escândalo, um espetacular duelo de atuação com a veterana atriz inglesa Judi Dench, que poria as duas no páreo da Academia.

Novos passos importantes rumo ao panteão pop seriam sua ponta em Chumbo Grosso (2007), a irresistível mistura de comédia e ação de Edgar Wright, e a participação em Não Estou Lá, o delirante ensaio de Todd Haynes sobre a vida e as muitas peles do camaleão do rock original, Bob Dylan. Nesse último, um filme com alguns altos e muitos baixos, Blanchett é, de longe, a figura mais hipnótica e intrigante do longa – e a única do elenco diversificado (há desde o menino Marcus Carl Franklin ao galã romântico Richard Gere) a estar caracterizada exatamente como Dylan – e a lhe soprar uma vida que falta às demais visões do diretor americano.

A comprovar o quanto Cate Blanchett teve uma trajetória vitoriosa na primeira década dos anos 2000, ela fez um retorno triunfal à personagem que lhe pôs no mapa: em Elizabeth – A Era de Ouro (2007), ela volta, se isso é possível, com ainda mais ferocidade ao papel da personagem-título, numa produção mais madura e cheia de camadas do que a original. No ponto culminante do seu annum mirabilis, ela chegaria à cerimônia do Oscar de 2008 indicada a Melhor Atriz, por Elizabeth, e Melhor Atriz Coadjuvante, por Não Estou Lá. Não levou nenhum, mas isso não diminui a importância do seu feito – e a extraordinária versatilidade e amplitude emocional que seu trabalho acumulou ao longo dos anos.

A colheita prolífica de Blanchett nos 00’s teria ainda mais dois triunfos antes do fim da década. Em Indiana Jones e o Reino da Caverna de Cristal (2008), de Steven Spielberg, ela aproxima-se mais uma vez da cultura pop, ao encarnar a vilã russa Irina Spalko, num filme que pode não estar no mesmo nível dos melhores momentos de Indy no cinema, mas tem sua considerável cota de charme. E, no comovente O Curioso Caso de Benjamin Button (mesmo ano), de David Fincher, ela retoma a parceria com Brad Pitt, ao viver o amor de uma vida inteira do protagonista, a bailarina Daisy – performance pela qual, por algum motivo, ela não foi indicada ao prêmio da Academia. Um raio, aliás, que não tardaria a cair de novo.


A trabalhadora mais árdua do showbiz (2010-hoje)

Como sói acontecer a muitos grandes artistas dados a ciclos, Cate Blanchett sentiu, depois da sequência de triunfos no cinema, a necessidade de voltar aos palcos. Ela e o marido, Andrew Upton, viraram diretores artísticos da Sydney Theatre Company, na Austrália, e passaram os primeiros anos 2010 levando novas montagens fabulosas de clássicos do cânone, como Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, com direção da bergmaniana Liv Ullman, e Tio Vanya, de Anton Tchékhov, onde ela contracenou com os companheiros de geração Richard Roxburgh e Hugo Weaving. Claro que, sendo Blanchett, essas peças foram acontecimentos no meio, e renderam elogios e láureas abundantes.

Desde então, Cate vem sendo – para usar o epíteto atribuído a James Brown – a trabalhadora mais árdua do showbiz. A década atual continua a refletir o seu escopo de interesses e a vontade de se superar, se renovar, se reinventar a cada novo trabalho.

Contemporâneas como Kate Winslet e Nicole Kidman, por exemplo, atravessaram marés baixas que reduziram consideravelmente a sua presença nas telas, além de nem sempre funcionarem em outros contextos que não o drama mais denso (para não falar no machismo estrutural, que ainda prejudica a oferta de papéis por causa do gênero e de fatores como a idade). Blanchett, por sua vez, como talvez apenas Meryl Streep antes dela, só faz crescer em estatura.

Alternando entre projetos mais pop – o retorno como Galadriel, na trilogia O Hobbit (2012-14), e vilãs maravilhosas como a madrasta má de Cinderella (2015) e a diva Hela, de Thor: Ragnarok (2017), além de trabalhos de dublagem na série animada Family Guy (Uma Família da Pesada no Brasil) e nas animações em longa-metragem Ponyo – Uma Amizade que Veio do Mar (2008), de Hayao Miyazaki, e Como Treinar Seu Dragão 2 (2014) –, outros mais densos – como o tour de force de Blanchett em Blue Jasmine (2013), de Woody Allen, pelo qual ela finalmente ganhou o Oscar de Melhor Atriz, e joias como Carol (2015), nova parceria com o diretor Todd Haynes (e nova indicação ao Oscar) e Cavaleiro de Copas (2015), do mítico cineasta americano Terrence Malick – e ainda outros onde ela emprestou sua figura conhecida para alavancar produções independentes, como Conspiração e Poder (2015).

Ela também vem intercalando os trabalhos no cinema com novas incursões aclamadas pelos palcos, como o Platónov, de Tchékhov, montado na Broadway em 2017, pelo qual ela recebeu o Tony. Ao mesmo tempo, Blanchett se dedica mais e mais a causas humanitárias e ambientais, promovendo a igualdade de direitos e salários entre os gêneros, a maior participação feminina em Hollywood, a repulsa às velhas e arraigadas práticas machistas da indústria, a ampla representação LGBTQ, o abrigo a refugiados e o controle das emissões de carbono.

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Repare que, ao longo deste texto, nem sempre as menções aos filmes de que Blanchett participou foram elogiosas. De fato, vários dos trabalhos aos quais a atriz empenhou seu talento são apenas bons, ou mesmo medianos. Mas uma coisa nunca foi posta em dúvida: a qualidade do seu trabalho, não importa o papel.

E essa, acredito, é a marca de qualquer grande intérprete: não vicejar num ambiente onde tudo funciona à perfeição – digamos, num Babel ou num Notas sobre um Escândalo da vida – e sim engrandecer, com a força de sua personalidade e inteligência, trabalhos que poderiam facilmente ser esvaziados de significado e empatia, como o sutilíssimo Sob o Efeito da Água ou o excessivamente estilizado Não Estou Lá.

Quase se poderia aplicar o mote de Norma Desmond (a imortal personagem de Gloria Swanson em Crepúsculo dos Deuses [1950]) à atriz: Cate Blanchett sempre é grande. Os filmes é que podem ser grandes ou pequenos.

Claro que uma artista tão formidável jamais cultivaria tal atitude de diva, mas como se ver na presença dela sem esboçar um sorriso bobo e um olhar embasbacado?


As atrizes dos memes provam que não estou sozinho nesse deslumbramento.

Sobre o autor

Renildo Rodrigues

Jornalista formado pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam). foi roteirista e auxiliar de direção no programa Set Ufam, exibido na TV Ufam entre 2007 e 2010. Também já atuou como assessor de imprensa. Cinema e música são seus principais interesses na área cultural. Diretores favoritos: Woody Allen, Martin Scorsese, Federico Fellini, Stanley Kubrick e Francis Ford Coppola.

1 comentário

  1. Nelly

    Excelente texto sobre Cate Blanchett, provavelmente o melhor que já li em português. No entanto, tenho alguns comentários, Cate tornou-se diretora artística da Sydney Theatre Company em 2008. Ela recebeu uma indicação ao Tony em 2017, mas não ganhou. Além de Cavaleiro de Copas, ela também está em De Canção em Canção e é narradora da versão longa de Voyage of Time de Terrence Malick. Os dois primeiros foram rodados no mesmo ano, se não me engano.

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