Se você conhece um pouco do trabalho do austríaco Michael Haneke, sua primeira reação ao se deparar com o título de seu novo trabalho é rir. O diretor, especialista em retratar a alienação e falência moral da Europa, só pode estar brincando. “Happy End”, no entanto, nos dá não somente um final feliz, mas todo um filme relativamente leve se comparado a outras obras do realizador.
O longa trata da vida de uma família rica em Calais, cidade portuária no norte da França infame por ser um ponto de concentração de refugiados que buscam chegar à Inglaterra. Os burgueses, completamente alheios à crise ao redor, vivem suas vidas pequenas com suas infelicidades, traições e depressões – sendo ocasionalmente capturados pela lente da menina Eve (Fantine Harduin), a mais nova integrante do clã.
Na melhor tradição da frase, atribuída a Karl Marx, de que a história acontece duas vezes, sendo a primeira como tragédia e a segunda como farsa, Haneke repete todo o seu arsenal de temas em um mosaico cheio de tentativas de humor. Você tem a sociopatia infantil e desconectada de “O Vídeo de Benny”, a questão racial de “Código Desconhecido” e a depressão do 1% de “O Sétimo Continente”, por exemplo.
De toda a sua filmografia anterior, apenas “O Tempo do Lobo” e “A Fita Branca” parecem ter passado batido nesta revisão. Raios, até o final do potente “Amor” é descrito em uma cena pelo personagem de Jean-Louis Trintignant (que também estrelou o outro filme), numa metalinguagem que beira o surreal.
Com isso, “Happy End” se apresenta como uma coletânea de melhores sucessos e quase que um resumo no maior estilo “Revisão do Telecurso 2000” de todas as proeminentes características do cinema hanekiano. Com uma narrativa que parece atirar para todos os lados, o realizador acaba se perdendo em um filme largamente desprovido de arcos de desenvolvimento para seus personagens, andando a esmo e não chegando a lugar algum.
A ironia de que Haneke não consiga, aqui, trabalhar o formato da história em vinhetas é palpável quando analisamos sucessos como “71 Fragmentos de uma Cronologia do Acaso”. Também decepciona a abordagem dada às redes sociais, que são jogadas no roteiro de maneira errática e sem contribuir muito para o todo. Enquanto “O Vídeo de Benny” foi um tiro certeiro na desconexão que a cultura dos vídeos caseiros causava na juventude europeia, os registros de Eve e as mensagens instantâneas trocadas por seu pai (Matthieu Kassovitz) e sua amante (Hille Perl) parecem datados logo de cara.
Isso talvez tenha um pouco a ver com a origem do projeto: o elemento das redes sociais veio do abandonado longa “Flashmob”, que o austríaco pretendia escrever, dirigir e lançar em 2015. Em Cannes, na coletiva de imprensa de “Happy End”, Haneke disse que não ficou satisfeito com o desenvolvimento do roteiro daquele filme e o descartou, mantendo somente esse viés para “Happy End”, o que deixa entrever como esse tema parece enxertado aqui de maneira forçada.
Na falta de uma história potente, o diretor nos brinda com diversas cenas de sarcasmo e que provocam reais risadas. Além disso, com a sua cena da performance de “Chandelier”, de Sia, ele entra para a crescente lista de auteurs contemporâneos que usam música pop com sarcasmo e deboche (estou falando com você, Yorgos Lanthimos). Infelizmente, esses raros momentos não justificam, sozinhos, um filme menor do diretor.
Raramente discordo tanto de uma crítica quanto discordei dessa. Isso não quer dizer obviamente que o crítico em questão, que entende de cinema muito mais do que eu, não tenha razão. Apenas acho que, se eu tivesse a lido, teria talvez deixado de ver esse filme que me prendeu do início ao fim, que não vi passar o tempo e lamentei muito quando terminou. Teria continuado ali por muito mais horas vendo uma trama que, com economia de explicações, vai apresentando pessoas reais, situações que todos conhecemos e que ignoramos porque é mais fácil ignorar. Vejam esse filme e todos os outros de Haneke (menos talvez aquele violência gratuita ou não sie que nome tem dos dois caras que invadem a casa da família rica. Aquele filme é bom, mas é terrível). Fita Branca é incrível, e me remete muito a este Final feliz.