Meu olhar de cinéfilo hipster em relação O Grande Hotel Budapeste não é de enxergá-lo como a obra favorita de Wes Anderson, cargo que pertence ao Fantástico Senhor Raposo. Nem mesmo, a que mexe intensamente com as minhas emoções, função exercida pela A Vida Marinha com Steve Zissou. Entretanto, reconheço que a saga de M.Gustave (Ralph Fiennes) e Zero (Tony Revolori) tem uma etiqueta de grande valia dentro da filmografia do diretor: é a obra que exala sua maturidade, de alinhar tão bem sua estética ao conteúdo e de deixar fluir a sua mente criativa em um mundo fantástico simétrico,que é uma belíssima brincadeira com gêneros e estereótipos sobre a história e a arte moderna.

Baseado nas obras do escritor austríaco Stefan Zweig – que já ganhou adaptações tão diferentes no cinema como Carta de uma Desconhecida de Max Ophuls e A Coleção Invisível de Bernard Attal -, O Grande Hotel Budapeste catalisa Anderson para um fluxo de cinema diferente do que ele vinha até então construindo. Das relações amorosas de Três é Demais e dos vínculos familiares de Os Excêntricos Tenenbaums, ao mundo infantil de Moonrise Kingdom e das relações profissionais de A Vida Marinha, o universo de Anderson sempre foi marcada pela sua eterna obsessão pela forma e conteúdo que reflete nas cores, direção de arte e fotografia estilizadas de seus filmes.

Ainda que fascinantes todos esses elementos, ficava nítido que a forma era muito mais interessante que o conteúdo. Enquanto o primeiro é o fim da equação, o segundo é o seu meio. Por isso em O Grande Hotel Budapeste temos uma dimensão oposta disso, uma inversão de papéis necessária para que seu autor finalmente atinja o domínio e a solidez da sua narrativa de espírito livre, que diminui o pragmatismo visual de suas outras obras, para equilibrá-lo em pura harmonia com sua narração e seus personagens cartunescos (mas adoráveis) dentro de situações insanas. Estes aspectos, servem para o seu cineasta contar sua comédia amalucada, inspiradas nas famosas Screwballs que a Hollywood da década de 30 e 40 adorava produzir com diálogos ágeis e ousados no seu próprio texto, repletos de safadezas. É claro que para Anderson, toda esta diversão precisa passar pelo seu selo “autoral”, composto por um toque melancólico e lúgubre para adocicar sua veia tragicômica.

O que se vê aqui é uma progressão da moldura fílmica, cheia de frescor, que mesmo que pareça inofensiva em um primeiro momento pelo tom de fábula, trata-se de um cinema complexo, cheio de versatilidade, por combinar gêneros cinematográficos, prestar suas homenagens a grandes cineastas – das comédias pastelonas de Ernst Lubitsch ao humor intelectual de Jacques Tati – e sustentar o estilo de Anderson, sem precisar abdicar dele – há diversos zooms e travellings sempre presentes em seus outros filmes – assim como brincar com a janela da tela de projeção cinematográfica, alternando do 1,85:1 nas cenas do presente para 1,33:1 nas cenas do passado.

Contudo, Anderson não fica apenas nas brincadeiras visuais. Há na sua fotografia um método de contextualizar sua narrativa de modo sério, através das épocas diferentes – o enredo de Hotel Budapeste se passa em três períodos distintos – e isso pode ser observado nos filtros da fotografia de Robert D.Yeoman que mostra o presente nos anos 80 com uma neutralidade sem vida e apática (indicativo da letargia das emoções), enquanto nos anos 60, o local ganha cores desencantadas como o laranja e o roxo que apontam para o início da sua decadência, diferente da primeira fase,a década de 30, fase de ouro do hotel, que possui cores fortes e ingênuas como o vermelho e o rosa predominando nos cenários e figurinos parecem indicar ao espectador, o quanto este período era belo, colorido e excêntrico demais, graças a sua simplicidade.

Por estes elementos técnicos, o filme respira cinema de qualidade pelo tom fantasioso que executa suas gags visuais e narrativas – as mortes de alguns personagens são puramente encenadas com cinismo por Anderson, que elas acabam se tornando cômicas. Porém, nada da sua estética teria grande força, se o conteúdo utilizado pelo cineasta não fosse repleto de alegorias e metáforas significativas. Dentro da caricatura de um roteiro, Anderson flerta bastante com a arte e suas vertentes clássicas e contemporâneas: o seu cinema hipster moderno com a literatura clássica, sem deixar de lado a pintura através dos seus cenários e ambientes estilizados e a teatralidade com espírito de trupe pelo seus incontáveis atores e personagens.

No meio desta corrida maluca, que o roteiro cria, para falar sobre cumplicidade, amizade, paternidade e a importância dos vínculos familiares (sejam eles de sangue ou não), O Grande Hotel Budapeste é uma singela homenagem ao cinema antigo, a ode a um tipo de arte que não existe mais, da qual, o ato de se contar uma história era (ou ainda é) a principal essência de um filme. É nele que o longa constrói o último vínculo com um mundo que sumiu, mas que ainda reside vivo e fascinante em nosso imaginário, através dos filmes, livros, obras de arte, músicas, etc.

Anderson brinca com esta questão anacrônica que faz parte da história européia, representado pelo hotel Budapeste como a parte tradicional daquela belle époque que praticamente foi sugada pela ascensão do fascismo e da Segunda Guerra, impacto que trouxe profundas alterações nos rumos da história da arte no século XX, além das transformações na sociedade e no ambiente, gerando a confrontação entre o Velho e Novo Mundo europeu, da qual a arte perde espaço frente a violência e ganância e os valores éticos-morais da civilização se perdem pelas mudanças advindas dos horrores bélicos.

Anderson abraça este olhar, sempre por meio de um humor gracioso que nunca é agressivo. Quando M.Gustave foge da prisão e descobre que Zero não trouxe nenhuma vestimenta limpa e nem seu perfume favorito L’Air de Panache, sua reação inicial é reprender seu pupilo julgando-o a partir dos seus costumes culturais. Ao descobrir que ele é um refugiado, uma vítima da guerra que perdeu seus entes queridos para violência, Gustave nota que foi embuído por um sentimento preconceituoso e pede desculpas ao amigo. Anderson nesta pequena e significativa cena, deixa claro que neste mundo cada vez mais intolerável em que vivemos, um pouco de bom senso e autocrítica consigo mesmo e empatia com outro, são pequenos gestos para promover laços humanos entre os seres humanos.

O diretor também dá espaço para que o tom fabulesco da sua obra, ganhe força por meio da teatralidade de seu elenco composto por rostos conhecidos como Bill Murray, Owen Wilson, Jason Schwartzman, Tilda Swinton e Adrien Brody, atores recorrentes na filmografia do diretor, que mesmo em pequenos papéis que variam de 2 a 3 cenas, emprestam a bagagem humana necessária para seus personagens. É claro que nada disso importa, quando você tem a dupla Ralph Fiennes e Tony Revolori possuídos em cenas. A interação entre eles é verdadeira ancora do filme, com ambos construindo a atmosfera humanista, dinâmica e ágil do longa a partir dos detalhes e dos ritmos que o texto oferece ao público.

Mesmo que apresente como único pecadilho o ato final abrupto e anticlimático que não combina com uma obra tão bela quanto marcante, O Grande Hotel Budapeste é um Wes Anderson mais maduro na sua discussão e olhares hipsters sobre a arte cinematográfica. Encaixa todas as suas neuroses em prol de uma belíssima homenagem ao próprio ato de contar histórias. Como disse no início desta crítica: não é sua obra-prima, mas é o seu filme que mais dialoga com as suas caricaturas de personagens e seu universo cinéfilo. Representa que histórias mágicas como apresentada pelo filme, jamais serão esquecidas por aqueles que curtem um cinema de qualidade.