Um dos trabalhos iniciais realizado pelo grupo artístico do qual faço parte, a Artrupe Produções, foi o espetáculo de teatro A Casa de Inverno. Foi o primeiro processo artístico em que conseguimos manter uma dedicação diária, desgastante, mas, muito enriquecedora. Na época, conseguimos algo que hoje parece impensável: fizemos temporada durante meses no teatrinho do Sesc – sim, o Sesc-AM já teve teatro….

Adquirimos uma relação com o público e era muito recompensador ver o quanto as pessoas embarcavam no espetáculo. Quando queriam elogiar a peça, porém, recorrentemente diziam: “Nossa, nem parece que é de Manaus!”.

É claro que a pessoa diz isso na melhor das intenções, querendo valorizar o seu trabalho, demonstrar o quanto gostou. Mas é sintomático. É tão bom, que não é possível que alguém daqui tenha feito. É quase um xingamento às avessas. Um elogio que demonstra mais surpresa por não se ver algo ruim do que outra coisa.

Mas controlar o pensamento dos espectadores é algo que não se deve fazer. Se o que a pessoa possui de referência é o que viu pela TV e determinados trabalhos artísticos amazonenses precários, não se pode culpabilizar a pessoa em si, mas todo o sistema que a impede de ter acesso a outras obras.

O problema, grande, é quando os próprios realizadores compartilham desse pensamento. Quando pensam que o que é produzido fora é melhor mesmo, e que é impossível competir por “n” fatores como dinheiro, infra-estrutura, profissionais, formação, investimento privado, etc…. Quando isso acontece (e sejamos francos: em Manaus isso acontece) nos distanciamos de maneira decisiva de alcançar o reconhecimento que merecemos.

Não estou vendendo a frase de que “se a gente não acreditar no nosso potencial, quem irá?”, porque vai além disso. De maneira prática, por que não acreditar no nosso potencial? Basta analisar desempenho e reconhecimento alcançado por obras de Márcio Souza, Milton Hatoum, Diego Moraes, Luneta Mágica, Romahs Mascarenhas, Francis Madson, Ricardo Risuenho, Sérgio Cardoso, dentre diversos outros artistas amazonenses contemporâneos de áreas variadas, pra constatar que o que é produzido aqui possui qualidade, gera interesse não apenas dos outros estados, mas também de outros países. Por estarmos próximos, muitas vezes não nos damos conta.

A desconfiança em cima do que produzimos fica mais inexplicável quando é possível conversar com artistas de outros locais, de regiões vistas como mais efervescentes culturalmente no Brasil, de Recife a São Paulo, de Belo Horizonte a João Pessoa. O interesse em cima do que é feito aqui é enorme, impressiona até. As pessoas querem saber o que é produzido, quais são nossos temas, nosso sotaque, humor, nossa maneira de enxergar a realidade. É quase uma lógica inversa. Temos mais motivos para sermos confiantes em mostrar nosso trabalho do que o contrário. Eles estão abertos a nos receber.

Os artistas ligados ao Boi Bumbá, citando um exemplo, entenderam isso ainda nos anos 1990. Constataram o enorme alcance do seu produto, e literalmente rodaram o mundo, tornando-se profissionais amplamente consagrados.

Trazendo a coisa para o cinema, vemos nomes como Sérgio Andrade, Aldemar Matias, Elen Linth, Rafael Ramos, Flávia Abtibol cada vez mais presentes em listas de importantes festivais e editais de cinema, já inseridos numa lógica de produção e distribuição que corresponde ao pensamento de artistas que sabem o valor do seu trabalho. Entendem que ele gera debate, inquietações para pessoas de outros contextos, que por não conhecerem de perto os nossos signos acabam tendo reações até mais envolvidas do que os espectadores locais.

Tem muita gente começando a fazer cinema em Manaus, e isso é excelente. Essa empolgação impulsiona e tira do lugar, mas está longe de ser o suficiente. Eu, assim como muita gente há uns 8 anos atrás, fui impulsionado pelo Zê Leão (ex-Junior Rodrigues) a tirar do papel meu primeiro roteiro, produzir nas condições que fossem. Havia sempre o álibi de que estávamos começando. Não era mentira. Mas chegamos em 2018 e a conversa de que estamos começando é bastante semelhante.

Como que faz para viver de cinema num lugar de terceiro mundo? Fazendo filme na raça, cavando vaga em festivais, conhecendo produtores, curadores, etc, para se tornar conhecido por pessoas que podem abrir portas, pra adquirir currículo pra pleitear produções maiores, orçamentos maiores. É o que todos fazem. Em cidades com situação econômica melhor e pior que Manaus. Em muitos casos, os curtas que estão rodando Rio, Brasília, São Paulo, Curitiba, Recife, etc. não tiveram mais dinheiro que os nossos, nem condições mais facilitadas. Saíram de condições parecidíssimas às nossas.

É preciso olhar para dentro, mas também é fundamental olhar para fora. Até pela falta de continuidade de um festival de cinema que trouxesse novidades da produção contemporânea brasileira, ficamos durante um bom tempo sem ter contato com as principais produções do país. Esse déficit fica ainda mais notável nos curtas-metragens, que são mais difíceis de achar disponíveis na internet antes de completar dois anos de circulação. Isso é um dos motivos que ainda faz com que seja comum vermos curtas amazonenses ainda muito focados em arcos narrativos clássicos, em curtas com cara de longa achatado pra caber em 15 minutos. Há os que possuem como referência uma linguagem mais novelesca, ou buscam elementos nas comédias românticas americanas, blockbusters. Só que buscando a caricatura, e implorando para que o espectador aceite vários defeitos técnicos, afinal custa dinheiro e bons profissionais “recriar” o método de produção ultraprofissionalizado dos Estados Unidos.

Nosso cinema é outro. Pode ser influenciado pelo cinema americano, mas não irá reproduzir o mesmo método de produção, nem a mesma estética visual, pois não há dinheiro para tal. Quando se entende que é possível driblar isso, e criar métodos mais simples e criativos para contar nossas histórias, passamos a compreender ainda mais sobre linguagem, pois a limitação é um estímulo poderoso. É fundamental investigar esse tipo de cinema, adquirir essas referências, afinal esse é o cinema que está ao nosso alcance, é de excelente qualidade, e podemos realizá-lo aqui.

Não quero vender apenas um jeito de produzir, ou apenas um tipo de referência. Mas encarando os fatos, e vendo a continuidade do cenário nos últimos 10 anos, é possível compreender porque há diretores que invariavelmente alcançam algum resultado, e outros que possuem produção que escoa de maneira desajeitada para internet com poucas visualizações e parco retorno financeiro.

É importante adquirir a vivência no mundo real, adquirir aos poucos o entendimento de como funciona a lógica de produção de cada local, e de que maneira isso reverbera no estilo dos filmes. Não pra tentar fazer igual, mas para que a partir desse acúmulo de visões, sejamos capazes de olhar para o que temos, para a oferta de temas, histórias e estilos que nossa cidade abarca e, a partir daí, ter um olhar maduro pra produzir algo que seja daqui, e do mundo também.

Manaus é uma cidade com possibilidades cinematográficas amplas, vastas, transbordando. Pode ser cenário rico para histórias de quaisquer gêneros, abarcando floresta, cidade urbana, praia, periferia, e uma série de outros signos marcantes. Tem rostos diversos, herança nordestina, do Sudeste, japonesa, árabe, latina, e boa quantidade de profissionais talentosos para dar conta dessa demanda. Literatura, teatro, música, dança, costumes vivos, que dão cara única para cá. E tudo ainda com a embalagem do novo, do que foi pouco visto e ainda gera interesse. Não é de qualquer lugar que podemos falar isso.

Quando a gente constatar o óbvio, e nos dermos conta do quanto podemos crescer com o que temos aqui, vamos nos surpreender com o tempo que perdemos com a política do café com bolacha água e sal a que estamos submetidos a tanto tempo. Tomara que seja logo.