Responsável pelo dois longas-metragens do Amazonas mais reconhecidos no Brasil e no exterior nos anos 2000 – “A Floresta de Jonathas” e o ainda inédito “Antes o Tempo Não Acabava” – o diretor Sérgio Andrade inicia, na próxima segunda-feira (2), as gravações do novo filme da carreira. A ficção científica “A Terra Negra dos Kawá” irá contar com um elenco formado por uma família indígena amazonense e atores reconhecidos do cenário nacional como Mariana Lima (“Quem é Primavera das Neves?”), Marat Descartes (“Quando Eu Era Vivo“) e Felipe Rocha (“Como Nossos Pais“).

Com investimento de R$ 1,405 milhão proveniente do edital de produções de baixo orçamento do Ministério da Cultura, “A Terra Negra dos Kawá” mostra a relação de um grupo indígena chamado Kawá com a terra preta existente na região e seus potenciais curativos, energéticos e até sobrenaturais. A chegada de três cientistas ao local muda o panorama da situação já que um deles (Marat Descartes) possui intenções de explorar a região economicamente.

A principal locação do filme fica em um sítio localizado em um ramal da rodovia Manoel Urbano (Manaus-Iranduba). Também haverá gravações em flutuantes no Rio Negro e em laboratórios do Instituto de Pesquisas da Amazônia (Inpa). As filmagens serão realizadas durante quatro semanas de outubro, sendo a equipe formada por 50 pessoas, a maioria delas de amazonenses, incluindo, Yure César como diretor de fotografia e Adroaldo Pereira no figurino.


Família indígena será protagonista

Na filmografia marcada por três curtas de ficção e dois longas, Sérgio Andrade costuma colocar atores indígenas em papéis de destaque. “Cachoeira” e “Antes o Tempo Não Acabava” são os maiores exemplos disso. O fato voltará a se repetir em “A Terra Negra dos Kawá”. A diferença é que a equipe será composta por uma família: o pajé Severiano Kedassare, a esposa dele, Emerlinda Yepario, e os filhos Kaya Sara e Anderson Kary-Bayá.

Em coletiva de imprensa realizada no Centro Cultural Povos da Amazônia na manhã deste sábado (30), Sérgio Andrade afirmou que o trabalho com atores indígenas sempre o impressiona muito. “Quando pensei no grupo dos Kawá, estes quatro atores me vieram à cabeça. Eles trouxeram esta força e energia indígena. Isto emana deles. O filme é uma homenagem a eles”, declarou.

Este não é o primeiro trabalho da família com Sérgio. O pajé e o filho Anderson fizeram parte do elenco de “Cachoeira”, enquanto Kaya esteve em “Antes o Tempo Não Acabava”. Falando em tukano, seu Severiano contou sobre a expectativa que tem em relação à “A Terra Negra dos Kawa”. “O filme será importante para mostrar que os indígenas não moram só no mato. Estamos presentes em cada canto, pode ser na cidade, no mato, onde for. Me sinto bem fazendo o filme que fala sobre a terra negra. Espero que a gente mostre às pessoas como valorizar e respeitar a terra”, declarou.

O cinema encantou tanto a família que Anderson já revela futuros planos. “Antes, a gente ia pelo dinheiro mesmo. Porém, hoje em dia, já encaramos como trabalho, algo sério. Evoluímos bastante. Tenho vontade de fazer cinema como diretor. Quero mostrar o universo deste lado guerreiro do indígena”.


Desmistificação da Amazônia e do povo indígena

O trabalho com indígenas e a observação da terra negra como aspecto do progresso natural da Amazônia inspiraram Sérgio Andrade na criação do roteiro do filme. O diretor afirma que o novo projeto busca algo ambicionado desde “A Floresta de Jonathas”: a desmistificação do exotismo da Amazônia. Isso a partir de um indígena independente, tendo problemas e achando soluções para eles como qualquer pessoa sem precisar do homem branco.

“Nos meus trabalhos, gosto desta brincadeira com a realidade para que passe alguma questão que é mais complexa e seja vista de uma forma mais metafórica, imaginativa. Isso estimula a parte lúdica das pessoas para o entendimento de algo tão complexo como este assunto das questões indígenas”, declarou.

Para Mariana Lima, participar do filme amazonense serve como uma forma de sair da zona de conforto. “Sentia que estava representando personagens muito próximos da minha realidade. Quando chegou o roteiro, foi como um gatilho para experimentar rumos diferentes”, disse. Ela considera ainda que a oportunidade de fazer uma cientista, profissão em que o foco do trabalho está em um outro objeto e não em si próprio, contribuiu para aceitar fazer “A Terra Negra dos Kawá. “Esse potencial de transformação, para mim, como atriz é convidativo e acho uma paralelo interesse com essa característica da terra preta. Estou super animada, feliz de estar aqui”.

Já Felipe Rocha não era a primeira escolha para o filme: a ideia era contar com um ator que tivesse o espanhol como língua nativa. O preparador de atores da produção, Pedro Freire, porém, acabou sugerindo o nome do ator com participações de destaque nos recentes “Como Nossos Pais” e “Pendular”. E o encanto de Felipe com o projeto foi imediato: “lendo o roteiro parecia que eu tinha tomado algo e pensei: caramba, se no papel ele já tem essa força mágica, imagina filmado”.

Diretora de arte de sucessos do cinema nacional recente como “Boi Neon” e “Corpo Elétrico“, Maíra Mesquita assume a função em “A Terra Negra dos Kawá”. A paulista moradora do Recife há um ano explicou que, apesar do universo do filme ser bem diferente do que está acostumada, a vontade de conhecer um mundo novo a ajuda no trabalho. “Gosta da ideia de quebrar o estereótipo de que os indígenas estão no passado. A proposta é colocar um embate com a atualidade, ou seja, eles estão se desenvolvendo dentro da própria cultura enquanto temos a continuidade da nossa. O encontro das singularidades me encanta no filme”, define.


Metáfora sobre a propriedade da terra indígena e reconhecimento das minorias

A Amazônia virou o centro das atenções nos últimos meses devido a diversas notícias preocupantes. Isso inclui o decreto do governo federal para a permissão da exploração mineral em uma reserva ambiental entre o Pará e o Amapá (revogado por Temer após muitos protestos sociais) e a suspeita de chacina em uma comunidade indígena isolada no interior do Amazonas.

O próprio ator de “A Terra Negra dos Kawá”, Anderson Kary-Bayá, falou sobre um episódio delicado que viveu na reserva onde trabalha. Segundo ele, homens em tratores chegaram a invadir o espaço e os indígenas enfrentaram dificuldades para impedir o fato. “Chamei as pessoas daqui para ajudarem, mas, ninguém apareceu. Se eu falar: ‘vamos salvar a Amazônia’, pouca gente liga, mas, mesmo assim, faço minha parte. Como muitas vezes acontece, o índio não consegue se expressar bem em português, então, fica fácil passar por cima da gente e levar todas as nossas riquezas”, afirmou.

No meio deste cenário de constante ameaça à floresta e aos povos da região, Sérgio Andrade considera que o novo projeto surge como uma metáfora sobre a propriedade da terra indígena. “É importante que o indígena, a pessoa que detenha a terra da maneira mais natural ganhe protagonismo. Meu interesse maior em trabalhar com indígenas é colocá-los como protagonistas mesmo. Eu posso ser branco, mas, não faço isso para aparecer e sim para colocar esta cultura no protagonismo. No cinema brasileiro, o homem do Sul, Sudeste, Nordeste sempre foi muito explorado e o homem do Norte? A gente quase não vê. É preciso falar o que está acontecendo aqui. E neste momento em que assistimos a caça aos direitos das minorias, indígenas, quilombolas, a gente tem que estar do lado deles. Quem faz cinema de direita só a favor do capital deve ser execrado. O cinema é um braço de um rio para escapar desta corrente maligna”, disse.

Para Mariana Lima, o Brasil vive um momento de reconhecimento das dívidas sociais com as populações responsáveis pela formação cultural e social do país, especificamente, a indígena e a negra. A atriz aproveitou a ocasião para fazer duras críticas ao momento brasileiro.

“Eu me sinto até envergonhada quando sou apresentada como representante da etnia branca, que é a etnia que está no poder e que não reconhece a diversidade, a riqueza do povo. Acho que toda tentativa política, artística, social, sociológica de reconhecimento e valorização destes povos que nos constituem são muito importantes. A arte tem esta função e os filmes do Sérgio são importantes para isso. Não dá para continuar assim, a terra e o povo estão sendo explorados desde a invasão portuguesa até os dias de hoje com este governo golpista, escroto. A Renca foi o fundo do poço”, declarou. “Somos indígenas, pois, todos pertencemos a esta terra. Ela é nossa, viemos daqui. Reconhecer-se como indígena é algo que deveríamos fazer mais”, completou Mariana.

Intérprete do cientista Juan, Felipe Rocha considera que o filme será um instrumento muito forte para o debate das questões indígenas e, consequentemente, da Amazônia. “No momento em que a produção possui personagens nativos da região, a gente está automaticamente adquirindo a responsabilidade do que está acontecendo. Quanto mais a gente fala da desigualdade, da opressão, melhor para a sociedade”.

 “A Terra Negra dos Kawá” ainda não tem data definida de estreia nos cinemas.

CONFIRA A ENTREVISTA DE SÉRGIO ANDRADE PARA O CINE SET NO FESTIVAL DE CANNES 2017:

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