Em seu ótimo texto que abriu o Especial de Terror de 2019, o amigo e fã de terror Ivanildo Pereira ressaltou a importância de John Carpenter para o cinema de gênero e Bacurau. O cineasta americano também foi o cara que fomentou e desbravou com enorme competência no seu clássico Halloween: A Noite do Terror, o slasher movie, um dos subgêneros mais bastardo do cinema de horror (no Especial de Terror de 2015, falo um pouco sobre ele) caracterizado por um psicopata que aterroriza um local – fraternidade, acampamento, cidade pequena e etc. -, devido um trauma psicológico/sexual sofrido no passado, matando jovens que apresentam comportamentos transgressores (principalmente na esfera sexual).
Porém, por mais que idolatre Carpenter, eu preciso colocar os pingos nos is: se Halloween foi o pai do slasher americano, o marco que definiu as regras básicas do ciclo da matança americana, uma análise mais aprofundada da sua árvore genealógica permitirá você encontrar perdido, o avô mais genuíno da família, o ótimo Noite do Terror produção canadense/americana dirigida pelo eficiente Bob Clark em 1974, quatro anos antes do trabalho de Carpenter.
Antes de Michael, Jason e Freddy marcarem uma época, Clark na primeira metade da década de 1970 criou um maníaco insano e sombrio chamado Billy que durante o feriado de Natal, ameaça a tranqüilidade de estudantes de uma fraternidade feminina passando trotes obscenos por telefone.
Mesmo com 45 anos nas costas, Noite do Terror é a gênese do cinema slasher. Clark criou um precursor no subgênero que é facilmente observável pelo talento como projeta os medos do público nos cantos mais escuros do seu filme, sempre através das ações da figura enigmática do seu assassino. A obscuridade que o filme sofreu, muito em razão do sucesso da obra de Carpenter – que por ironia do destino ganhou até um subtítulo idêntico no Brasil – e a enorme popularização do subgênero, não escondem o belíssimo trabalho de Clark, que mesmo depois de várias décadas, merece ser descoberto.
Um Slasher profundamente sedimentado terror psicológico
Noite do Terror foi o primeiro terror que utilizou uma data festiva para matança. Outros como Halloween, Sexta-Feira 13 e Dia dos Namorados Macabro seguiram a mesma idéia nos anos seguintes. O grande diferencial dele é explorar um slasher psicológico que valoriza a nossa empatia com as vítimas para deixar a figura do mal nas entrelinhas, sempre ameaçadora. Clark prioriza a construção do suspense e personagens em detrimento das mortes, diferente do que acontece em 90% dos filmes de terror.
Por isso Noite de Terror é um baita filme carregado por um clima sombrio e ritmo misterioso na qual o diretor prima pelas cenas de assassinatos marcadas por tomadas elegantes e estilizadas, padrão este raro em um filme de terror. Temos um trabalho atmosférico que utiliza ótimos enquadramentos intimistas e a câmara subjetiva – acompanhamos várias cenas pelo ponto de vista do assassino, sem o enxergamos na sua totalidade – para deixar camadas subliminares em torno dos crimes cometidos. O ótimo trabalho de iluminação e uso de sombras acentuam consideravelmente a sutileza na construção do medo psicológico até em razão da câmera de Clark fazer diversos travellings pelo cenário, proporcionado um sentimento de insegurança no espectador como se o uso do recurso fosse o olho do próprio assassino sobrevoando o cenário e suas possíveis vítimas.
Também não deve se negar o quanto o trabalho bebe diretamente da fonte do giallo italiano em voga na década de 70, sendo a influência principal as obras de Dario Argento e Mario Bava. O estilo bizarro e intimidador juntamente com a fúria niilista que Billy pratica os crimes remetem as obras italianas. Destaque para a bela seqüência da morte de uma personagem sob o canto de Natal, filmada com um refinamento estético pelo diretor que não faria feio para nenhum giallo italiano.
Humor sarcástico e elementos audaciosos
Apesar de ganhar notoriedade até hoje como o pai da comédia sexual da década de 80 com Porky’s – A Casa do Amor e do Riso, sua continuação Porky’s – O Dia Seguinte, além de dirigir comédias descartáveis nas décadas seguintes (Bebês Geniais e Karatê Dog), Bob Clark foi responsável por gratas surpresas no cinema de terror como é o caso de dois interessantes filmes de zumbi: Crianças Não Devem Brincar com Coisas Mortas e Sonho de Morte, ambos com uma forte alegoria político-social e audaciosos no seu humor.
Por isso, em Noite do Terror são estes elementos que mais me interessam nele: o roteiro escrito por Clark e Roy Moore é repleto de um sarcasmo perverso e politicamente incorreto. Por sinal, há diversas situações nele que não encontramos mais nos filmes de terror politicamente corretos dos dias atuais. Em uma das cenas, Barb (Margot Kidder, pré Lois Lane de Superman) oferece um copo de bebida alcoólica a uma criança, situação filmada em um tom deliciosamente cínico e que se realizada hoje faria Clark ser excomungado do cinema.
Chama atenção o quanto este cinismo e politicamente incorreto do filme, se alinham a falta de moralidade que ele trabalha dentro do campo do terror, o que permite Clark expandir os elementos mais tradicionais do slasher para questões insinuantes. É um terror ambíguo, cujo humor irreverente das suas piadas sexualizadas incide numa forte crítica aos costumes, à política e a sociedade patriarcal da década de 70. Não podemos esquecer que Noite do Terror foi realizado na década de 70, período marcado pela contracultura e o surgimento dos movimentos hippie e feminino que lutavam pela liberdade e a quebra de tabus em relação ao neoconservadorismo vigente.
Desta maneira, não tem como não associar um grupo de mulheres sendo aterrorizada por um maníaco (Billy) como uma crítica transgressora a um contexto misógino que dirigia sua violência aos corpos e posturas femininas consideradas rebeldes. Clark abrange estas questões em diversas situações dentro do filme: a heroína Jess discursa a favor do aborto e mesmo grávida se recusa a casar por não querer abrir mãos dos seus planos pessoais; Barb expõe abertamente sua sexualidade, além de estar sempre com cigarro e bebida em mãos; a Sra.Mac responsável pelas meninas é uma senhora liberal e solteira; o namorado de Jess assume uma posição tóxica e ameaçadora depois de não ter seus desejos satisfeitos pela parceira. Isso sem contar a policia, a própria lei, fazendo pouco caso frente às necessidades e anseios do grupo feminino (vista como uma grande histeria) e materializado no policial ignorante Nash. O fato de o próprio assassino atacar dentro da própria fraternidade deixa claro que a violência – simbolizando os vários casos domésticos – vem de dentro e não de fora.
Esta rebeldia, que nas entrelinhas fala sobre violência, sexualidade e toxicidade contra a figura feminina, além da ótima atmosfera de horror psicológica construída por Clark, permitem o filme ser uma das melhores experiências do cinema slasher ao lado de Halloween, Quem Matou Rosemary? e Chamas da Morte, ainda que Noite do Terror ao lado do filme de Carpenter se destaquem pelo talento de contar uma história atraente e concisa. Vale destacar também os acordes sinistros de Carl Zitter, e ótimo elenco que além de Margot Kidder, conta com Olivia Hussey (de Romeu e Julieta de Franco Zeffirelli), Keir Dullea (um dos astronautas de 2001, Uma odisseia do espaço) e John Saxon figurada carimbada no cinema de horror.
Influenciou diversos filmes do ciclo na década de 80, inclusive outros mais recentes como o próprio Pânico de Wes Craven (a cena de abertura tem toques do filme de Clark), Noite Sangrenta e Mensageiro da Morte de Fred Dalton. Existe até a lenda urbana em torno do filme que o Rei do Rock, Elvis Presley era um grande fã do filme e sempre o assistia na véspera de natal. Geralmente esquecido, Noite de Terror como avô do subgênero teve ainda, mesmo que tardiamente, o reconhecimento de filme cult e clássico que merece. Um belo exemplar para você conferir em uma noite de sexta-feira chuvosa ou guardar para assistir no dia 31 de outubro.
* Texto original alterado para substituir a equivocada expressão humor negro.