É de total conhecimento que o horror gótico surgiu na literatura inglesa através da fértil imaginação de Edgar Allan Poe, Bram Stoker, Mary Shelley, Robert Louis Stevenson, entre outros. Por trás do gótico britânico, existia todo um romantismo pelo passado, com a ode por espaços lúgubres como cemitérios, casas e castelos em ruínas; as revoltas sociais frente ao colonialismo; o avanço da ciência moderna em confronto com as superstições tradicionais e a decadência dos valores humanos. Todos estes elementos ajudaram a metaforizar o confronto com o passado do homem gótico em busca das suas motivações internas.

O cinema americano foi o primeiro a explorar a fonte gótica na década de 1930 com os filmes de monstros da Universal, porém, eles funcionavam como mero entretenimento, ainda que utilizasse com o afinco o apuro visual gótico. O segundo foi o cinema britânico, entre as décadas de 1950 e 1960. Nele, o horror gótico deslumbrava o público com seus personagens emblemáticos, enquanto passeava por temáticas sexualizadas, graças aos filmes de vampiros produzidos pela Hammer. Por mais que os ingleses deram uma belíssima contribuição ao gótico no cinema de gênero, são os italianos os responsáveis, por digamos, aprimorar e elevar o horror gótico na sua dramaturgia do medo. Este boom gótico, percorreu a terra da bota entre o final da década de 50 e em grande parte das décadas de 60 e 70.


O início do ciclo do Gótico italiano e as características

A era dourada do horror italiano teve a tendência de recuperar o componente britânico gótico pitoresco, para incrementá-lo ao fazer cinema italiano cheio de erotismo, fantasmas emocionais (culpa, medo e angústia), possessões macabras, mortes sangrentas e repressão da sexualidade. Neste contexto, nomes como Riccardo Freda, Antonio Margheriti, Massimo Pupilo e Mario Bava impulsionaram o horror gótico na Itália através de estrelas internacionais como Christopher Lee e Klaus Kinski nas suas obras para atrair o público.

Bava, sem dúvida, foi o nome mais o maestro do ciclo. Em sua filmografia, sempre colocou o gênero em discussão, separando os conceitos entre o gótico e terror para ressignificá-los em prol de atingir o seu maior objetivo que era afligir o medo do macabro e do desconhecido no público. Para ele, o gótico sempre foi a atmosfera e o estado de espírito dos personagens, suas motivações e ações naquele contexto. Já o terror estaria na reação e relação da pessoa com este meio.

Em cima destas idéias, Bava sintetizou a fórmula do horror gótico italiano:

a) histórias que ocorrem em tempos remotos;

b) atmosferas irreais que evoquem questões sobrenaturais – seres do além – em cenários desoladores como cemitérios, castelos, casas, vilarejos;

c) crimes que sugerem a presença de um forte teor de violência e erotismo latente;

d) personagens ambíguos e amorais que refletem o peso psicológico do passado como a decadência humana e

e) a narrativa sugestionável como elemento de construção do suspense por meio de vieses psicanalíticos dos personagens.

Não é à toa que o diretor sempre foi muito bem conhecido pelo seu talento de sobrepor gêneros de terror dentro dos seus filmes, de fazer um cinema de horror transgressivo de enorme fascínio. Isso explica sua alcunha de ser chamado de o pai macabro do gótico italiano e o criador do giallo italiano, outro subgênero que fez grande sucesso na Itália, da qual Bava emprestou a atmosfera barroca, repleta de sofisticação visual do gótico para imprimir a violência macabra tão típica do giallo.


O criador e seu Universo

Bava começou sua carreira como supervisor de cenário e iluminação e diretor de fotografia de gente consagrada do cinema como Roberto Rossellini, Jacques Tourneur e Raoul Walsh. Sua carreira como diretor decolou tardiamente, ele tinha 43 anos quando co-dirigiu o primeiro filme em 57. De lá até seu último filme em 77 – o diretor faleceu em abril de 80- foram 27 filmes em 30 anos no cargo, o que dá uma produtividade de um filme por ano. Sua experiência na cadeira de diretor caiu dos céus quando o amigo Riccardo Freda abandonou as filmagens de Os Vampiros com apenas 30% da película rodada.

Diretor de fotografia do filme, Bava assumiu a direção e finalizou o filme em dois dias, bem abaixo do tempo previsto. Os Vampiros é considerado o primeiro horror italiano sonoro pós-segunda guerra. Baseado na lenda de Elizabeth Bathory, a condessa vampírica que se banhava no sangue das virgens para continuar jovem, o filme é um eficiente conto gótico sobre a obsessão da imagem eterna, filmado com elegância, apesar das limitações técnicas. Era o primeiro indicativo para os produtores, do enorme talento de Bava em trabalhar com recursos minguados e entregar produtos autorais e de grande qualidade artística.

Só que foi o seu debut oficial como cineasta em 60 que abalou as estruturas do horror no cinema: A Máscara do Demônio, uma formosura gótica, com um caráter fantástico esteticamente impressionante. Se há um cânone expoente, para definir um conto de horror gótico sobrenatural, Máscara é o objeto cinéfilo ideal para isso. Um belo trabalho da mise-en-scene em uma fotografia P&B, que torna toda atmosfera surreal em um pesadelo filmado e transforma temáticas medievais como bruxaria, inquisição e vampirismo em arte politizada. Há uma orquestra visual com elementos expressionistas que criam diversas cenas deslumbrantes. Abaixo, você pode conferir a primorosa cena que abre o filme, focado na história da princesa bruxa Asa (a britânica Barbara Steele) e de seu irmão Igor Javutich, condenados a morrer na fogueira por práticas de satanismo.  Por causa do filme, Barbara se tornou a rainha dos filmes de horror.

No mesmo ano de 1963, Bava lançou dois trabalhos que exibiram o poder criativo do seu universo sobrenatural fantasmagórico. Ambos trazem a essência do gótico por excelência, afinal são fartos pela influência barroca e pelo uso de sombras e efeitos visuais, alinhadas a iluminação colorida e extravagante. Refletem o uso de temáticas pesadas como a violência, desvios sexuais, erotismo e degradação familiar. O primeiro é uma antologia de contos, As Três Máscaras do Terror. O grande destaque nele é a consistência como Bava constrói as suas três histórias. Nelas, há temas controversos e tabus da época como o voyeurismo, sexualidade e fetiche. Em As Três Máscaras há uma precisão no terror gótico clássico, que abusa da paleta de cores e luzes e do som intrusivo para criar contos macabros pautados pela ganância e culpa, dignos da literatura de Edgar Allan Poe.

O segundo trabalho é O Chicote e o Corpo, a versão fantasmagórica sexualmente perversa de Um Corpo que Cai de Hitchcock. Detalhes da obra, você confere nesta crítica mais aprofundada feita há três anos para o Cine Set. Em o Ciclo do Pavor de 1966, utiliza cenários lúgubres para explorar o sobrenatural decorrente de segredos familiares e vinganças do passado por meio de um subtexto elegante que discute o pensamento científico como explicações para eventos sobrenaturais. É dos trabalhos de Bava, o que mais se aproxima dos contos góticos – há um forte aspecto onírico de pesadelo na obra – ao focar a temática de superstições, crenças e elementos fantasmagóricos sobre um vilarejo assombrado por um fantasma que compele seus habitantes ao suicídio. Sintetiza o terror na sua esfera mais sobrenatural e intimista, apenas utilizando cores e contrastes.

“Quando eu faço filmes de horror, meu objetivo é assustar as pessoas, mas ainda assim eu sou um covarde de coração fraco. Talvez por isso que meus trabalhos ficam tão bons em apavorar o público, pois eu me identifico com meus personagens… Seus medos também são os meus” (BAVA, Mario)


Todas as Cores da Escuridão do legado gótico para o cinema de horror

O horror gótico italiano desenvolvido por Bava elevou o gênero a um acentuado gosto pelo macabro, mortes estilizadas, violência intensificada pelas cores, numa paleta saturada, com narrativas barrocas sustentadas por um bel-prazer pela morte, amoralidade e decadência humana. Filmes que provocam um sentimento de irrealidade que povoa todo a produção, como se o cineasta criasse uma realidade a parte, uma espécie de purgatório que sufoca os personagens.

Bava também foi um dos pioneiros no cinema de horror a criar certas transgressões ao dar destaque a presença de mulheres fortes como protagonistas em seus filmes. Em A Maldição do Demônio, Barbara Steele faz o papel duplo da princesa Katia e da Bruxa Asa, sendo a segunda uma das grandes bruxas do cinema; Em O Chicote e o Corpo é a bela Navenka de Daliah Lavi que movimenta todo o arco emocional dramático do filme. No giallo A Garota que Sabia Demais e no thriller psicológico Cães Raivosos são as mulheres o fio condutor moral e corajoso dentro de um mundo misógino selvagem. Curioso que na maioria destes filmes, as mulheres exercem um papel ambíguo, que transita entre a vítima ingênua e o monstro frio e calculista.

O gótico “baviano” também abriu espaço para surgimento do giallo italiano. O cineasta quando lançou Seis Mulheres para um Assassino fundiu atmosfera lúgubre e sonora (o som ambiente de ruído de ventos e o ranger de portas) dos seus filmes góticos com a temática transgressora da violência brutal dos gialli italiano. Nunca as cores da escuridão tiveram uma força tão grande nas imagens da estética do cinema fantástico como em Seis Mulheres. Os planos e enquadramentos elegantes da violência juntamente com a trilha sonora estilizada com certeza inspiram autores como Dario Argento e Lucio Fulci. O primeiro aprimorou a aula de contrastes e cores de Seis Mulheres para fazer sua arquitetura de imagens em seu grande conto gótico sobrenatural, Suspiria, onde uma academia de dança tem a engenharia física de um castelo medieval.

Fulci empresta atmosfera onírica de A Maldição do Demônio para fazer o estudo sobre o regresso do sobrenatural nos filmes que dirigiu A Casa do Cemitério e Terror nas Trevas, uma mistura do gótico com o surrealismo. A própria temática da natureza humana amoral (perversão, crueldade, ambição, laços familiares tóxicos, etc) serviu de base para 90% do giallo italiano e de seus personagens ambivalentes.

As influências de Bava ultrapassaram o continente europeu como também serviram de base para homenagens de grandes diretores. Federico Fellini nunca escondeu que um dos seus filmes de horror favoritos é o Ciclo do Pavor, inclusive rendendo uma bela homenagem no seu segmento de Histórias Extraordinárias ao filme de Bava. Por sinal, um dos primeiros filmes a abordar um fantasma infantil vingativo que amaldiçoa pessoas, veio de O Ciclo do Pavor antes de estourar no J-Horror asiático com Ringu (O Chamado) e Ju-On (O Grito).


“Repulsa ao Sexo”: clássico de Polanski influenciado por “O Chicote e o Corpo”

No cinema americano, Brian De Palma com Dublê de Corpo e Carrie – A Estranha e Roman Polanski em Repulsa ao Sexo, abusaram dos desvios sexuais misturados com fetiches e violência sádica de O Chicote e o Corpo em suas produções. E não tem como dissociar a subversão que o diretor fez ao giallo, antecipando o slasher americano em Banho de Sangue, ao assistir Sexta-Feira 13, Parte II, filme que copia na cara de pau, diversas cenas do filme de Bava. Até os jovens realizadores como Jennifer Kent em The Babadook e Ari Lester em Hereditário fizeram uma bela homenagem a Bava. Podemos dizer que até na dramaturgia brasileira, a série As Noivas de Copacabana, estrelada por Miguel Fallabella na pele de um serial-killer nos meados dos anos 90 na Rede Globo tem uma leve influência do Alerta Vermelho da Loucura de Bava. No mundo da música, a banda Black Sabbath retirou seu nome do título inglês de As Três Máscaras do Terror com o vocalista Ozzy Osbourne considerando ele um dos seus filmes favoritos.

Curiosamente, Bava no fim da carreira, retornaria ao próprio cinema gótico no genial Lisa e o Diabo, um filme-súmula que define sua carreira através de um verdadeiro exercício de manipulação cinematográfica – seu trabalho que melhor “casa” realidade e fantasia – que não deixa de ser uma interessante metáfora sobre o artesão e a sua arte, daquilo que se constrói e manipula dentro da sétima arte. Não duvido este ser um dos filmes de cabeceira de David Lynch ao criar sua fenomenal série Twin Peaks.

Por isso, analisar o legado cinematográfico do horror gótico deixado por Mario Bava revela um belíssimo processo de criação cinematográfica entre o cinema de gênero e de autor. A sua excelência, permitiu o desbravamento dentro dos próprios subgêneros de horror, abrindo caminho para uma geração de diretores italianos. Foi um resistente, que trouxe revoluções no campo visual como também temático. A opulência visual com as paletas das mais variadas cores, o uso de sombras para encenar o horror gótico; a sugestão como elemento de construção do suspense e da atmosfera; os olhares sobre a violência urbana e familiar e os vieses psicanalíticos dos personagens dentro dos seus conflitos permitiram a criação de metáforas e interações que sempre permearam grandes maestros cinematográficos.