Quando se fala em terror é automático associarmos o gênero ao cinema americano com suas mais variadas vertentes. Fora dele, é comum lembrarmo-nos do ciclo Giallo italiano; o J-Horror asiático; o New French Extremity, e por fim, até o horror expressionista alemão com seu Nosferatu e O Gabinete do Dr. Caligari. Curiosamente, relegado ao esquecimento da lembrança, o horror britânico exerce um papel fundamental na cultura do medo.

Ele é o principal alicerce de sustentação do gênero. Para o historiador do cinema de horror, Carlos Primati, a literatura clássica de Drácula, Frankenstein, Dr.Jekyl e Mr.Hyde, Dorian Gray, Sweeney Todd, Jack O Estripador ajudaram a construir os pilares do cinema de gênero. Os grandes monstros do terror, reais ou imaginários, são oriundos da terra da rainha e seguem a fórmula clássica que até hoje é encontrada nos filmes contemporâneos. O que entendemos hoje de horror é essencialmente britânico, o que demonstra a incrível força criativa de sua origem, segundo Primati.

Através das produtoras britânicas Hammer e Amicus, o horror inglês passou por um período sangrento com obras que extravasavam sexo, erotismo e violência. Porém, no final da década de 60 e início de 70, houve um salto gradativo das temáticas sobrenaturais sangrentas para uma abordagem mais séria, realista, que discutia vertentes religiosas para criar atmosferas macabras. Nos EUA, O Bebê de Rosemary abriu as portas para o cinema de horror psicológico, enquanto o sucesso comercial de O Exorcista ajudou a consolidá-lo.

No Reino Unido, obras menores e não tão conhecidas, trouxeram contribuições e estudos perturbadores aos espectadores na mesma intensidade. Neste embalo, O Homem de Palha e Inverno de Sangue em Veneza são filmes desconfortantes, com um pé no bizarro, que contrariam estéticas, narrativas e conceitos sociais/religiosos por intermédio das suas atmosferas genuínas de horror.

Nestes 45 anos de lançamento – ambos foram lançados no mesmo ano, em 1973 – se tornaram cults e influenciaram diretamente a cultura pop de um modo geral. É difícil não associar a filosofia do folk horror de O Homem de Palha aos filmes que abordam a religião neopagã das wiccas, sem contar sua influência direta no sucesso recente de Corra!. Já Inverno de Sangue em Veneza com sua atmosfera bizarra, com certeza serviu de inspiração para composição de cenários de vários filmes de David Lynch e Dario Argento como também alguns de seus elementos (a garota de capa vermelha) foi homenageada em A Vila de Shayamalan e no drama de guerra de Spielberg, A Lista de Schindler. Se isso, não mostra ainda para você, a relevância dos dois filmes britânicos, segue uma análise mais detalhada sobre eles.

Os contrastes religiosos e a intolerância

O Homem de Palha, dirigido por Robin Hardy acompanha o sargento Howie (Edward Woodward), investigando o desaparecimento de uma garota numa ilha na Escócia, comandada pelo Lorde Summerisle (Christopher Lee). O lugar é repleto de rituais extravagantes que mexerá com os valores cristãos do policial. Por mais que a narrativa criada por Hardy siga um interessante mistério investigativo de Agatha Christie, o filme trata, essencialmente, da religião, ao contrapor o paganismo dos moradores do vilarejo com o cristianismo de Howie que vai lidar com o forte erotismo local.

Neste ponto, O Homem de Palha toca em pontos polêmicos da intolerância religiosa – muito presente nos dias de hoje – que é confrontada com as antigas tradições pagãs que fazem um escárnio cruel do cristianismo ao mostrar casais fazendo sexo ao livre, mulheres dançando nuas e crianças na escola aprendendo a importância do falo e do sexo. O contraste de ambas as religiões e seus rituais é inteiramente o ponto provocativo do filme, que ao mostrar, os moradores de Summerisle liberais sexuais, se divertem mais do que o rigoroso cristão autoritário Howie, o sujeito que sempre diz “estou aqui falando sério” como forma de reprimir os prazeres humanos. Enquanto o policial condena o desejo e evoca a ordem de uma sociedade moral através de um Deus onipresente, os moradores desfrutam do desejo e declaram o seu amor pelos deuses da natureza.

Mesmo sem ser um filme de grandes sustos (ou medos), o horror de O Homem de Palha é trazer a angústia e melancolia que reinava na Europa nos anos 70 em relação a um novo mundo (totalmente desconhecido) que mostrava-se cheio de rebeldia em questionar a liberdade religiosa que a própria intolerância católica estabelecia sobre crenças diferentes ao seu ponto de vista. A polêmica reside no lado cético da obra de ver com ironia o julgamento cristão.

É curioso que com o crescimento da onda conservadora e cristã no mundo atual, o Sargento Howie ainda está presente em diversas ações fanáticas de hoje que aparecem nas mídias sociais e o filme de Hardy ainda tem fundamentação crítica para discutir nossa intolerância em lidar com o diferente, da impossibilidade de aceitação. Como uma moradora do filme diz para o policial “Você simplesmente nunca entenderá a verdadeira natureza do sacrifício”.É também complicado, entender a natureza do ser humano em tempos modernos. 


Os fantasmas da perda, a fé e o ceticismo

Se em O Homem de Palha tínhamos os questionamentos das concepções religiosas e seus valores, em Inverno de Sangue em Veneza tudo gira em torno da aceitação do luto e da crença na vida pós-morte. Acompanhamos o casal, John (Donald Sutherland) e Laura (Julie Christie) que depois de perderem a filha afogada na primeira (impactante) cena do filme, viajam para Veneza para esquecerem a tragédia. Porém, eles passam a ser assombrados pelo passado depois que uma médium cega confessa que a finada filha deseja se comunicar com eles. Inverno de Sangue é o horror psicológico filmado sob as lentes de um labirinto fragmentado de imagens. Será difícil achar outro filme que traduza em imagens, o horror do trauma e da perda como Nicolas Roeg realiza aqui.  É propositalmente bizarro e desconfortante como o discurso narrativo do roteiro se desenvolve. As imagens com planos diversos, construindo significados e orientando os sentidos dos personagens e do espectador, evidencia toda a expertise cinematográfica de Roeg na utilização da montagem e edição. Um cinema fora da linearidade narrativa e mais próximo da sensorialidade, graças a excelentíssima condução atmosférica sobrenatural.

O interesse do texto é apenas um: o foco na ambiguidade, a dicotomia entre a fé e o ceticismo e toda a psicologia por trás do ato de lidar com o luto. O recurso da concepção visual desta atmosfera, que praticamente retira do quadro fílmico, as cores quentes – a única, o vermelho, é reduzido a momentos chaves, geralmente associado a uma situação de perigo – transmitindo a sensação de tristeza, do luto do casal, do horror emocional que é proveniente das suas dores, mas que nunca é concreto ou verbalizado por eles e pelo texto.  Estes elementos deixam Veneza, a cidade italiana tão marcada pelo romance nos filmes, um ambiente lúgubre e assustador, como um espelho do purgatório emocional que John e Laura vivem como se parte do casamento e da felicidade do casal, se “afogou” ou se perdeu no mesmo dia da morte da filha no lago.

Por isso, é assustador como o filme conclui sua saga, ao revelar que a mesma morte que destruiu por completo o casal, trará a redenção dele através de outra tragédia como podemos ver na última cena do longa, um enterro, que mostra um dos personagens com uma expressão serena. Inverno de Sangue em Veneza é um filme feito para atordoar e não satisfazer o espectador.


No fim, duas arquiteturas do horror psicológico na construção da mise-en-scene

Quem acompanha cinema, sabe o poder da mise-en-scène (tudo aquilo que compõe o plano ou quadro fílmico, dos cenários as interpretações) principalmente na construção do cinema de horror. O Homem de Palha e Inverno de Sangue são dois grandes exercícios de suspense e mistério. São filmes ousados tanto na sua concepção textual (Homem de Palha com seu discurso anti-religioso) quanto visual (Inverno com seus jogos de imagens, montagem e edição esquizofrênica).

Apresentam cenas marcantes, com destaque para momentos eróticos: A cena que a jovem filha ninfeta (a bela atriz Britt Ekland) dança sensualmente para conquistar o Sargento Howie é um ponto alto e memorável em Homem de Palha, sem contar sua reviravolta final, tão impiedosa como grandiosa. Por sua vez, Inverno a cena de sexo selvagem entre John e Laura entrou para a história cinematográfica pelo grafismo de delírio imposto por Roeg, com seus cortes secos, a montagem não linear dos atos e toda a encenação visual fragmentada. É uma cena sexual tão bizarra, porém tão delicada após a tragédia da filha.

Nada disso teria sua força, sem o universo riquíssimo criado pelos dois diretores. Hardy em Homem de Palha utiliza um inusitado musical de terror (um Cantando na Chuva perverso) para apresentar suas músicas e coreografias de conotações sexualizadas. Sua atmosfera nostálgica fica clara nos figurinos e cenários hippies de Summerisle, contudo, sem esconder o sentimento de isolamento e de permanente solidão, que transmite a estranheza e excentricidade que um bom horror não convencional deve ter. Inverno de Sangue investe na sua atmosfera de pistas, cores, símbolos visuais e técnicas de câmera para fins narrativos. Esse resumo do que acabei de falar, você encontrará na genial seqüência de abertura abaixo, que mostra o domínio absurdo de Roeg sobre linguagem cinematográfica, apenas pelas imagens:

Se há um problema em torno dos dois filmes, é o azar clássico que sofreram: foram lançados no mesmo ano, do arrasa-quarteirão polêmico: O Exorcista. Nada contra o filme de Friedkin, que é um clássico absoluto, mas todos os holofotes em cima dele, tiraram o foco merecido sobre as duas produções inglesas. Ainda assim, O Homem de Palha e Inverno de Sangue em Veneza são filmes para serem cultuados eternamente, e não, à toa, o próprio Conde Drácula, Christopher Lee, considera o primeiro o melhor filme da sua carreira. São exercícios de se fazer cinema, que revelam que o melhor filme que assombra, também tem algo de interessante para serem explorados. Nunca se esqueça da enorme força criativa do horror britânico.