No cinema ou na TV, há uma obsessão mórbida frente aos seriais killers ou assassinos em série. De Norman Bates à Hannibal Lecter, de Dexter à série Mindhunter, o fato do público abraçar esses “seres do mal”, explique o quanto a nossa sociedade, pela sua natureza intrínseca frente a questões proibitivas, utilize sua fascinação pela sensacionalização do macabro. Geralmente, o sucesso destes personagens em filmes e séries, são reflexos claros de como as pessoas lidam com situações cotidianas extremas como a violência, a imoralidade e a sexualidade. Temos na produção audiovisual, a válvula de escape de “permissão” para lidarmos com a nossa própria agressividade e sair da dita normalidade.

E vamos ser francos: quem nunca enxergou traços de psicopatia em desenhos animados da infância, como Tom e Jerry, Coyote Coio e Papa-Léguas e no Pica-Pau? Esse sentimento estranho cresce consideravelmente, quando adentramos no campo da representação feminina. Lembro-me que há dois anos, muita gente não gostou de Elle de Paul Verhoeven porque a protagonista de Isabelle Hupert apresentava um comportamento obsessivo pelo seu estuprador e que isso era inviável de aceitar na realidade.

Só que a vida real, meus caros, é bem estranha. Independente do gênero, as subversões de comportamento e papéis são sempre marcantes, afinal a mente humana é uma caixinha de surpresas. Eu cresci com Annie Wilkens de Kathy Bates em Louca Obsessão e a Alex Forest de Glenn Close em Atração Fatal, duas sociopatas, tocando o terror nos seus machos alfas. E vê uma mulher no papel de uma serial-killer, cometendo atrocidades assustadoras, é um ponto que a serie – produzida pela filial em solo americano da tradicionalíssima emissora da terra da rainha, a BBC de Londres –  Killing Eve estabelece com bastante desenvoltura.

Criada pelo trio Sally Woodward (produtora da ótima serie britânica de detetive, Whitechapel), Lee Morris e Phoebe Waller-Bridge, a partir da saga de livros de Luke Jennings, de Villanelle, a série de dez capítulos é estrelada por Sandra Oh (a musa do novelão médico, Grey´s Anatomy) como Eve Polastri, uma assistente do MI5 britânico que se envolve em um jogo empolgante de gato e rato com a impiedosa assassina profissional, Villanelle (a ótima Jodie Comer).

Nunca tinha ouvido falar sobre a série ou sabia da sua existência – o que é uma grande vergonha, afinal ela lidera as indicações para o TCA Awards -, mas como pautas caem no seu colo (graças ao editor-chefe) através da indicação da colaboradora do site, Natasha Moura, Killing Eve se revelou uma adorável experiência, habilidosa por misturar ação, crime, espionagem e doses cavalares do ótimo humor britânico, dentro da sua narrativa. Logo, elenco três motivos, pelo o qual,  você precisa descobrir (e assistir) Killing Eve.

 1. O Protagonismo Feminino na espionagem

Dentro do cinema e da televisão, o mundo da espionagem é predominantemente masculino. Recentemente, alguns exemplares como Operação Red Sparrow e Atômica ajudaram a diminuir este paradigma na sétima arte. Killing Eve é neste sentido para TV em 2018, um ótimo exercício, onde você não encontra apenas uma, mas sim duas protagonistas.

Mesmo que se estabeleça como um envolvente jogo de gato e rato clássico, é a dinâmica entre Eve e Villanelle,  o elemento mais intrigante e sedutor da equação. As ótimas personagens femininas independentes e de personalidades fortes, dominam a cena, com direito a uma serial-killer que nos leva a questionar a visão ética-moral dentro de uma trama de espionagem. A relação entre Eve e Villanelle extrapola os papéis entre heroína e vilã, indo as vias da paixão e obsessão dentro do flerte sexual, e o texto neste sentido, é eficiente em definir a tensão sexual entre elas. É um puro Tom e Jerry de amor e ódio.

 2. Suas atrizes

Aos fãs de Sandra Oh, sua Eve Polanstri carrega muito das características da Cristina Yang da série médica de Shonda Grimes. Porém, em Killing Eve, a atriz tem um maior espaço para estabelecer seu carisma e explorar sua veia cômica. A forma como ela transforma a sua obediente, recatada e dedicada Eve “Amélia” do inicio da série, na mulher independente e de atitudes confrontadoras, durante o desenrolar da temporada, aponta a empatia da atriz para dar complexidade as suas atuações.

Contudo, é preciso falar da sua companheira de cena, a inspirada Jodie Comer. A jovem atriz é uma verdadeira montanha russa de composições da sua sociopata. Constrói muito bem sua personagem debochada, e hipnotiza a gente, a ser suscetível na crença, de que Villanelle pode ir da impulsividade e frieza de uma assassina, para a ternura e carinho de uma de uma criança que precisa de colo (a cena que abre a série, da personagem observando uma criança tomar sorvete, é eficaz em traduzir esta sensação). É uma espécie de Odette Roitman do mundo da espionagem, uma antagonista que o público venera: assustamos-nos pela sua forma insensível que ela executa seus alvos, dentro de uma maturidade emocional instável, digna do Coringa de Heath Ledger. Só que também, criamos um magnetismo pela simpatia que a interpretação de Comer lida com situações improváveis que sua antagonista enfrenta, e pelas suas frases de efeito irônicas, que a tornam engraçada. Sabe o termo roleta russa? É assim que encaramos a Villanelle de Comer e ela funciona como pura metáfora para o tom imprevisível que o universo da série assume na primeira temporada.

 3. Uma série que vai além do thriller de espionagem convencional

Em seus dez episódios, Killing Evie é uma mistura entre os filmes de espionagem antigos da série de 007 com a dinâmica de ação da série Missão Impossível, é claro sem esquecer os elementos literários de investigação de Sherlock Holmes, ao mesmo tempo em que presenciamos situações dignas, do humor finíssimo do grupo de comédia Monty Python. A forma impiedosa que a assassina de Jodie Comer comete seus assassinatos faria Mr.Lecter dar  sorrisos de satisfação pela criatividade como ela  orquestra suas jogadas.

Não quero dizer com isso, que a série é uma mera colcha de retalhos da espionagem, e sim que a forma como ela aborda o tema, transforma a história em algo mais: temos drama, suspense, humor, subversão e diversão, além de uma roupagem moderna focada na essência feminina e de estudo de personagem dentro da dinâmica das duas  protagonistas. Tudo isso, alinhado a um texto sarcástico e a uma composição dinâmica de quadros que dimensionam lugares, atmosferas cênicas e sentimentos de Eve e Villanelle durante seus confrontos – a cena da boate exemplifica com simplicidade, que a estética da produção facilita e muito, para uma envolvente sequência de perseguição de ação-suspense.

Ainda que se beneficie com episódios enxutos e dinâmicos na sua duração de apenas 41 minutos (diferente dos episódios de uma hora ou mais dos produtos da Netflix), Killing Eve perde o foco na sua segunda metade, com a mudança da linha narrativa da investigação, que se prende ao clichê cinematográfico da “organização secreta”, interferindo na dinâmica da caçada entre Eve e Villanelle muito bem desenvolvida na primeira metade. Outro ponto problemático é a subtrama da relação entre Eve e o marido que não ganha uma grande relevância dramática para o conflito da personagem.

 Independente desta desnivelada, Killing Eve funciona como uma grata surpresa e serve como um ótimo produto para BBC Americana utilizar como substituto para o carro chefe da emissora, o recém-encerrado Orphan Black. Oferece dentro de um thriller de espionagem, o típico jogo de gato e rato dinâmico e eficiente, contando com um elenco afiado e um texto hábil e inteligente em proporcionar entretenimento. Pra quem se diverte em fazer maratonas rápidas ou com apreço para a psicologia humana voltada para as assassinos em série, a série é uma bela armadilha – daquelas que Tom nunca soube fazer para capturar Jerry – para fisgar o fã obsessivo.