Christopher Nolan é um cineasta consagrado dentro da indústria norte-americana. Desde o seu primeiro longa-metragem, Following (1999), ganhou fama de ser um diretor capaz de dar um passo além do que é oferecido pelos blockbusters mais banais.
Devo dizer que os seus filmes não me pegam. Na minha opinião, a sua maior qualidade está na maneira como cria enorme hype em cima das suas produções, dialogando com um público mais exigente da mesma forma que faz com os que têm o cinema apenas como entretenimento. Possui grande capacidade de se vender como um autor dentro do cinema comercial, e soar crível para muita gente.
Não estou dizendo que é um charlatão, nem enganador, nada disso. É um diretor sério. Mas o fato, porém, é que o seu cinema não ultrapassa a linha do extraordinário. Na verdade, não chega perto. Da mesma maneira que não faz filmes ruins (com exceção do muito fraco Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012), Nolan realmente nunca fez uma obra prima indiscutível, que resista a mais de uma assistida.
Seus filmes se caracterizam por dispositivos instigantes, ideias que a princípio são muito inventivas. Um Batman numa estética realista, numa pegada Michael Mann; a rivalidade entre mágicos causada quando um deles aparentemente descobre uma magia real; um intrincado filme de ação em que criminosos podem invadir sonhos para roubar ideias e outras coisas de enorme potencial. Tudo é muito bem pensado, e impactante à primeira vista. Mas para onde esses filmes vão uma vez que o fator surpresa acaba?
Ficamos com obras em que a direção parece encantada demais consigo mesma e com a sua estrutura dramática, mas que uma vez que o jogo narrativo se estabelece, não rompe nada, não vai além em nada do que se propõe, resultando em filmes eficientes, e só. O Nolan roteirista parece mais capaz do que o diretor, que demonstra recorrente imprecisão na condução de cenas de ação mais elaboradas, não possui tanto controle de ritmo, fazendo filmes mais longos que o necessário, e que não tem nada de extraordinário nas composições visuais que cria. Colocando-o ao lado de nomes da sua geração, como Paul Thomas Anderson, Quentin Tarantino, David Fincher, James Gray é possível ver que são cineastas de categoria diferente. Outro patamar, pra usar um termo da moda.
Porém é importante fazer justiça a um grande filme de Christopher Nolan: Amnésia (2000). Aqui sim temos um trabalho em que a execução é tão inventiva quanto a ideia original, que o ritmo é fluido, e uma história intrincada é apresentada de maneira simples por conta de uma direção com ótimo domínio de montagem, roteiro e fotografia. É um filme com roupagem complexa, mas ao mesmo tempo convidativo, atraente.
E que já começa com o pé na porta. Que primeiro plano. Uma fotografia polaroid mostra um homem de bruços, morto, com sangue ao redor. A mão que segura a foto a chacoalha, e aos poucos a imagem vai ficando desbotada, mais desbotada, até que a imagem some e tudo fique branco. O oposto do que se espera ao chacoalhar uma foto polaroid. Com um plano temos estabelecido todo o jogo proposto. É um filme de trás pra frente, começa no fim, termina no início. É sobre como se deu a morte daquele homem.
Leonard Shelby (Guy Pearce) sofre de um trauma neurológico devido a um golpe na cabeça que recebeu de um bandido, que acabou matando a sua esposa na sequência. Após esse acontecimento, ele não é mais capaz de guardar memórias maiores do que os últimos 15 minutos. Não se trata de amnésia (o que ressalta o equívoco da tradução do título original, Memento), pois ele sabe quem é, e lembra de tudo o que aconteceu antes deste incidente. Leonard decide investigar a morte da sua esposa, e buscar o assassino para vingar-se. Por conta da sua condição médica, ele estabelece métodos para condicionar a sua investigação, através de fotografias, anotações, e até tatuagens para finalmente realizar seu objetivo.
MONTAGEM E ROTEIRO: PONTOS ESSENCIAIS
Um dos méritos que uma boa direção pode ter, dependendo da proposta, é fazer com que o público sinta, sem necessidade de diálogos expositivos ou coisas do tipo, a condição do protagonista, sua visão de mundo, e de que forma isso o faz tomar as ações que toma. Aqui, a estrutura elaborada por Nolan consegue realizar isso de maneira brilhante. Assim como Leonard, não sabemos como o personagem chegou aonde chegou, como conhece tal pessoa, tal lugar, e o que está fazendo ali. Cada cena de Amnésia se inicia com o final da seguinte. Ou seja, vemos sempre o acontecimento estabelecido (de surpresa), e depois como que aquilo se sucedeu. Na primeira cena vemos a fotografia do homem morto, na cena seguinte o seu assassinato, depois como se deu a chegada no local do crime, e assim por diante. Assim como Leonard, também não temos as informações (memórias), vamos entendendo os fatos conforme eles vão se passando.
De todos os méritos técnicos que o filme possui, o mais destacado é a montagem de Dody Dorn. Além da busca de Leonard, o filme intercala o relato da história de Sammy Jenkins, um homem que sofre de distúrbio semelhante ao do protagonista. Essa trama é contada de maneira cronológica, e vai se chocar com a história principal no desfecho. É admirável como mesmo contando duas tramas que seguem linhas temporais contrárias, o filme se mantém perfeitamente compreensível, e na verdade mais atraente conforme as cenas passam, pois as novas informações constantemente ressignificam o que acabara de ser visto. É um filme dividido em pequenas etapas, mas que não soa esquemático, nem se torna refém da própria ideia.
E é claro que, no caso de Amnésia, a montagem só é como é devido a estrutura do roteiro, escrito por Nolan ao lado do irmão, Jonathan, nesta que foi a primeira parceria da dupla. As informações sobre o passado de Leonard, Sammy Jenkins, e a sua busca pelo assassino são fornecidas a conta-gotas, preenchendo uma peça de cada vez do quebra-cabeças. É especialmente bem sucedido o desenvolvimento dos personagens coadjuvantes, que possuem camadas que modificam organicamente o rumo da história. As reviravoltas seguem uma lógica interna muito coesa, o que contribui para que o filme mantenha um teor de imprevisibilidade até o final mesmo que saibamos o destino dos personagens desde a primeira cena. Nem tudo fica claro dentro da trajetória de Leonard, e essas lacunas alimentam um mistério que colore o filme.
COESÃO E INVENTIVIDADE NÃO MAIS ALCANÇADAS
E já que citei os personagens, também há de se ressaltar as ótimas performances de Guy Pearce, Cary-Anne Moss e Joe Pantoliano. A composição fria e econômica de Pearce é fundamental para a compreensão da condição do personagem. Leonard tem olhos atentos, mas é uma atenção que traz um ar ingênuo, parecendo uma criança vendo tudo pela primeira vez. Como trata-se de um personagem com sede de vingança, temos uma figura imprevisível, que parece estar raciocinando o tempo todo de forma lenta, mas que pode agir de maneira intempestiva a qualquer momento.
Moss e Pantoliano, que fizeram parceria em Matrix (1999) um ano antes, compõem os seus personagens tendo muita consciência de que as aparências enganam. Tá na cara que Natalie é uma mocinha, e que Teddy é um vilão. Depois isso não fica mais tão claro assim, pois os seus atos sempre carregam alguma coisa por trás. Sem contar que conhecemos estas pessoas pelo ponto de vista de Leonard, alguém que certamente tem um juízo comprometido pela sua condição. Os Nolan criaram personagens que são verdadeiros presentes para qualquer ator, e esta trinca aproveitou muito bem.
Amnésia não foi um enorme sucesso de público, mas teve grande repercussão da crítica, e contou com participação e prêmios em diversos festivais, com o destaque para duas indicações ao Oscar, roteiro e montagem. Cumpriu papel fundamental no desenvolvimento da carreira do cineasta, que cinco anos depois faria seu primeiro Batman. Todos os seus filmes seguintes tiveram mais repercussão, e foram aclamados pela maioria do público, mas nenhum deles com a mesma inventividade e coesão que Amnésia. De todos os filmes de Nolan, este é o que mais forte permanece na memória.