Quando estava assistindo a It: Capítulo 2 no cinema, vendo as “palhaçadas” do Pennywise, um pensamento me veio à mente. Algo que, aliás, já tinha me ocorrido quando vi o primeiro filme em 2017:

“Puxa, o Freddy Krueger bem que podia processar o Pennywise, o cara tá roubando o número dele”.

Brincadeiras à parte, fico meio surpreso que mais gente não tenha levantado a questão de que algumas ilusões do Pennywise lembram muito os pesadelos do Freddy Krueger, com os quais ele costumava aterrorizar os jovens dos anos 1980. E aí me recordei que A Hora do Pesadelo (1984), o original dirigido por Wes Craven (1939-2015), completa seu 35º aniversário neste ano. Pois é: há 35 anos alguém sonhou pela primeira vez com Freddy, ouvimos aquela cantiga, vimos a casa dele e aquelas menininhas pulando corda…

E nossas noites nunca mais foram as mesmas.

O PRIMEIRO PESADELO A GENTE NUNCA ESQUECE

A mera existência do A Hora do Pesadelo original é um milagre do cinema. O subgênero slasher dava sinais de esgotamento: o público já estava ficando enjoado de tantas matanças e produções classe Z; os filmes eram alvos de críticos e pais preocupados; além de desagradar dois lados do espectro político norte-americano: progressistas acusavam estas produções de misoginia e serem reacionários; por sua vez, os conservadores protestavam por ver nudez, drogas e violência em excesso nas telas.

Em meio a esse cenário, Wes Craven estava em decadência após sua boa fase nos anos 1970. Vários fracassos e filmes bem ruins o deixaram sem trabalho. Foi quando ele se lembrou, então, de uma reportagem sobre estranhas mortes de jovens imigrantes do Camboja e do Laos: tinham presenciado atrocidades e guerras em seus países antes de emigrar para a Califórnia, mas muitos desenvolviam medo de dormir porque tinham pesadelos terríveis. Assim, faziam de tudo para permanecerem acordados. Quando enfim adormeceram, alguns não acordaram mais.

Na cultura desses países, existem espíritos e figuras nos sonhos que levavam os homens para o mundo dos mortos. Cientificamente, o fenômeno foi estudado e, hoje, é conhecido como Síndrome da Morte Súbita Noturna e Inexplicável (SUNDS, na sigla em inglês).

Viajando nessa ideia, Craven pegou a máquina de escrever e deu tudo de si na sua proverbial “última chance”: concebeu uma história com tons de conto de fada sobre adolescentes que passam a sonhar com o mesmo monstro e, quando os mata no sonho, eles morrem, também, na realidade. Craven conseguiu financiamento com alguns investidores, principalmente a New Line Cinema, do produtor Bob Shaye, que até então era apenas uma distribuidora. Quando os acordos de financiamento para o filme deram errado no meio das filmagens, a equipe e o elenco trabalharam por duas semanas sem receber.

Mas a despeito de tudo contra, deu certo. No lançamento em novembro de 1984, “A Hora do Pesadelo” foi um sucesso estrondoso de bilheteria. Ele tinha tudo que um bom slasher deveria ter: sangue farto, o elenco jovem era promissor e atraente – a mocinha vivida por Heather Langenkamp e a estreia de Johnny Depp nas telas –, e o vilão…

Bem, o vilão entrou para a história.

Craven queria um personagem que tivesse uma máscara, mas que também falasse, diferente dos assassinos silenciosos comuns à época. Então, fez Freddy ser horrivelmente queimado, inspirando-se visualmente em um mendigo que assustou o diretor na infância.

A luva com navalhas foi o toque de mestre, uma arma exclusiva do seu vilão. O papel foi dado ao ator que mais se divertiu sendo mau durante as audições: Robert Englund, um sujeito boa praça até então conhecido por comédias e seriados de TV. Englund disse que se inspirou nas atuações de Klaus Kinski nos filmes de Werner Herzog.

QUANDO ARTE E O TRASH SE MISTURAM

O brilhantismo do conceito de Craven era justamente o de que, num sonho, tudo é possível. Desde que, claro, o orçamento permita.

Nem todo mundo se lembra, mas Craven era um grande fã do cinema “de arte” europeu, especialmente Ingmar Bergman e Luis Buñuel. Cenas como a de A Hora do Lobo (1968), em que um homem anda pelas paredes, inspiraram Craven a criar momentos inesquecíveis com sets rotatórios.

A inesquecível morte da personagem Tina (Amanda Wyss) em que ela é arrastada pelo teto foi feita desse modo, com a câmera fixa enquanto o cenário ao redor dela girava. Christopher Nolan faria o mesmo em A Origem (2010).

Então o filme era inventivo, técnica e narrativamente. Muitas vezes o suspense vinha da incerteza do espectador: os personagens estão num sonho ou na realidade?

Isso também possibilitou trabalhar subtextos interessantes: há um inegável teor sexual em algumas aparições de Freddy, como a morte de Tina, que evoca um estupro; ou a cena da banheira, em que a luva do vilão aparece por entre as pernas abertas de Nancy.

A heroína também possuía uma função simbólica. Como uma autêntica heroína de contos de fada, era ela quem se dispunha a enfrentar o mal e se revela a personagem mais forte da história. Os pais dos jovens e a polícia se mostram completamente inúteis, e o abismo entre filhos e pais adiciona ainda mais força à narrativa. No meio do filme descobrimos que os pais da vizinhança criaram Freddy Krueger, e a violência e o terror escondidos naquele subúrbio perfeito implica que algo está podre no “reino da Dinamarca”. Craven expõe de novo o subterrâneo feio da sociedade norte-americana, como já o tinha feito em alguns trabalhos anteriores.

Sem dúvida, A Hora do Pesadelo era bem mais rico e interessante do que a média dos slashers da época. Seu sucesso acabou revitalizando o subgênero e ressuscitando a carreira do seu diretor.

PESADELOS EM FRANQUIA

Na visão de Wes Craven, o final original do filme era ousado: tudo poderia ter sido um pesadelo. Já Bob Shaye, esperto, quis deixar a porta aberta para sequências e insinuar que Freddy ainda estava vivo. Os dois se desentenderam, mas Shaye, como homem do dinheiro, teve a última palavra. A Hora do Pesadelo termina com um final ambíguo e, ao invés de escolher apenas um desfecho, incluíram todos que haviam sido testados junto ao público.

Com o tempo, as sequências diluíram o impacto do Freddy sombrio e assustador. Ele começou a fazer piadas e virou o verdadeiro astro do show. Mas, curiosamente, as sequências também fazem parte do legado de A Hora do Pesadelo como fenômeno cultural. A maioria delas até possuem um nível de qualidade consistente e revelaram atores e diretores como Patricia Arquette, Chuck Russell – que mais tarde faria O Máskara (1994) –, Renny Harlin e o roteirista Frank Darabont. Craven só contribuiu de leve com o argumento do terceiro filme.

 Hoje, A Hora do Pesadelo 2: A Vingança de Freddy (1985) é reconhecido como um raro exemplar do gênero com enfoque queer; e as heroínas das partes 3, 4 e 5 são exemplos de empoderamento feminino numa época em que nem se falava disso.

Então vieram os anos 1990: Freddy morreu em 3D e Craven depois retornou no criativo O Novo Pesadelo (1994), uma experiência metalinguística não muito bem compreendida na época, mas que lançou as bases para o que seria feito em Pânico (1996). O Novo Pesadelo merece ser revisitado: é interessante até para quem não curte a franquia.

OS LEGADOS DE UM PESADELO

A última vez que vimos Freddy Krueger no cinema foi no infeliz remake de A Hora do Pesadelo, em 2010. Mas o legado da franquia permanece vivo. Obviamente, o maior legado é a própria New Line, até hoje chamada de “a casa que Freddy construiu”. Atualmente, é um selo do estúdio Warner Bros., mas por muito tempo foi uma produtora ousada de filmes impactantes na indústria.

Foi pela New Line que diretores como David Fincher, com Se7en (1995); e Paul Thomas Anderson, com Boogie Nights (1997) e Magnólia (1999), foram revelados. Além, claro, de ter produzido a trilogia O Senhor dos Anéis. Hoje, a New Line retomou sua vocação como lar do terror. Que o digam o Pennywise e a boneca Annabelle…

Percebem-se também ecos do personagem, e até da franquia em obras recentes do “pós-terror” como Senhor Babadook (2014) e Corrente do Mal (2015). A Hora do Pesadelo revelou grandes nomes de Hollywood e incendiou as imaginações de vários cineastas que cresceram nos anos 1980. Ver o Pennywise em It desperta, para mim ao menos, um pouco de saudade do Freddy Krueger e seu universo. Essa é a grandeza do conceito: mesmo sem novos filmes, ainda podemos sonhar com Freddy, e por isso ele continua vivo. E, nos sonhos, ele pode virar o diretor do filme de terror das nossas mentes…

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