Unindo os Especiais de Terror e do Centenário de Ingmar Bergman, “A Hora do Lobo” nos brinda com a tentativa máxima de fazer terror do mestre sueco. Antes do lançamento de Persona, Bergman planejava filmar seu roteiro “Os Canibais”, mas devido a uma pneumonia que atingiu o diretor, o projeto foi engavetado. Só depois da obra revolucionária da sua criação artística, Bergman voltou ao velho script, o qual transformou no terror-psicológico “A Hora do Lobo”.

A história narra a vida do casal Johan Borg (Max von Sydow) e Alma (Liv Ullmann). Ele é um pintor atormentado, ela é sua dedicada esposa. Exilados em uma ilha no Báltico, o casal passa a rotina entre as saídas de Johan para pintar, os cuidados domésticos da jovem grávida e o medo do homem de certo horário da madrugada. As coisas começam a ficar mais obscura quando mulher descobre incidentes descritos no diário do marido perseguido por demônios. O casal é convidado para um jantar em um castelo próximo na ilha, recepcionados por figuras sinistras, a noite faz Borg atingir seu extremo.

O historiador de cinema e especialista nas obras bergmanianas, Peter Cowie, afirmava que “A Hora do Lobo” seria o primeiro de três filmes estrelados por Max Von Sydow como alter ego de Ingmar Bergman – um homem autocentrado assombrado pelo conflito entre o próprio mundo e a realidade. Seguindo essa visão, é lógico associar o personagem de Max ao diretor, ambos são artistas importunados por demônios, com sua arte diretamente afetada por eles. Indo além, a figura de Alma, a esposa cuidadosa, bem configura os relacionamentos de Bergman, sempre contaminados por sua mente carregada, constantemente lutando contra o abismo criado pelos fantasmas que o rondam. Curiosamente, assim como Alma, Liv Ullmann estava grávida da filha de Bergman durante o filme, com quem mantinha uma relação na época. Ficção e realidade se relacionam aqui, como bem pontuou a atriz, Alma tentou acompanhar a mente labiríntica de Johan, mas nunca conseguiu. Possivelmente, a tentativa compartilhada por ela na sua relação com Bergman.

Nessa transposição metafórica da própria realidade, o diretor revela seu terror, seus pesadelos mais sombrios. No longa, Johan acabando escolhendo a loucura dos fantasmas, no lugar da vida real ao lado da mulher. O que de certa forma foi o que aconteceu com o artista ao final da vida. Não é apenas “A Hora do Lobo” que mantém estreita relação com seu criador, aliás toda sua filmografia é expressão das suas experiências e visões íntimas da realidade ou do seu universo paralelo. Johan Borg desenhava os demônios que via no seu diário, Bergman fez filmes. Numa tentativa de desmistificar, compreender esses espectros.

Enquanto cinema de gênero, Bergman entrega um horror gótico de excelente performance. Distante de técnicas saturadas usadas na última década, o longa representa bem o que era feito nos filmes de terror outrora. A direção baseada na sensibilidade a conceito e luz, o que vem sendo resgatado atualmente, o mestre sueco constrói a tensão do filme, o clima de medo e dúvida, empregando muito de surrealismo e do expressionismo. O cinema Tod Browning, especialmente Drácula, é talvez a maior referência usada no longa. Quase diretamente referenciado nos frames de Georg Rydeberg, no papel do arquivista Lindhorst, talvez muito pela semelhança física, há a sensação de se estar vendo Bela Lugosi como o famoso vampiro.

A paisagem natural, expressão máxima da juventude dos seus personagens, dá espaço ao mistério do desconhecido. Como em “Persona”, duas pessoas inteiramente conflitantes são colocadas reclusas em uma ilha, expostas à prova da convivência e ao limite da consciência, esses personagens vão se desintegrado à medida que a narrativa avança. É na deterioração de Johan que o gênero tem seu ápice. Confrontado pelos demônios personificados, Borg sucumbe e some da realidade. Semelhante a Harriet Andersson em “Através de um Espelho”, ele é levado definitivamente para o irreal.  Johan é assombrando não apenas por essas figuras sinistras, mas também por saber estar entregue àquilo.

“A Hora do Lobo” define bem o criador que Ingmar Bergman se tornou depois do lançamento de “Persona”. Disposto a percorrer caminhos desconhecidos, longe do conforto de uma filmografia já extensa. “A Hora do Lobo” não representa só a incursão bem-sucedida do diretor em um gênero até então nunca explorado plenamente por ele, mas verdadeiro clássico para os amantes dos filmes de terror. Representativo não só na própria carreira do sueco, como também para um modo de fazer cinema que tenta recuperar o requinte das melhores expressões da categoria.