Tudo é muito grande em …E o Vento Levou: a escala da produção, a duração do filme, as paisagens e os cenários vistos e, sobretudo, as emoções dos personagens. O épico de Hollywood, que está completando seu aniversário de 75 anos, não apresenta nenhuma inovação narrativa, tem alguns momentos quase cafonas que inspiraram centenas de novelas, e apresenta uma visão claramente idealizada do Sul escravocrata dos Estados Unidos. Mesmo assim, essa comemoração é merecida porque o filme permanece divertido e envolvente apesar dos anos, e quem dá o veredito final sobre um filme é o tempo e o público. Se ambos aprovaram E o Vento Levou, é porque alguma coisa ele tem…

Provavelmente esse “algo” é a sua protagonista, uma das personagens femininas mais incríveis da história do cinema americano e mundial. E mais: essa personagem foi vivida por uma atriz muito especial, de poucos trabalhos, mas que mesmo assim deixou sua marca nas mentes e corações de cinéfilos em todo o mundo.

Depois de uma procura que demorou anos, a inglesa Vivien Leigh foi escolhida para interpretar a americana Scarlett O‘Hara. No começo do filme, ela é uma dondoquinha – a primeira aparição dela já deixa isso claro, quando rodeada de pretendentes, ela reclama da “atual conjuntura” da Georgia, seu Estado natal. “Guerra, guerra, guerra… Essa conversa acaba com a diversão de qualquer festa”, ela diz. A guerra a que ela se refere é a futura Guerra Civil a ser travada entre o Norte desenvolvido e industrializado e o Sul agrário e escravista, e logo esse conflito vai bater à porta da sua gigantesca fazenda chamada Tara, administrada pelo seu pai (Thomas Mitchell).

Porém, antes da guerra chegar Scarlett só se preocupa com sua paixão por Ashley Wilkes (Lesley Howard). Apesar de ser um sujeito muito sem graça, ele é o homem dos sonhos da jovem protagonista. Só há um problema: durante a celebração do início do filme, Scarlett descobre que ele vai se casar com sua prima Melanie (Olivia de Havilland). Melanie é um doce de pessoa, e magoá-la é algo inconcebível. Naquele mesmo dia Scarlett, revoltada por perder seu grande amor, conhece Rhett Butler (Clark Gable), de forma curiosa. Rhett, como se costumava dizer antigamente, é um “homem de verdade”, com “H maiúsculo”, um cara meio rebelde que não quer se envolver na guerra. Ele é do tipo que Scarlett precisa – ela só não sabe disso, e talvez não o perceba até a cena final do filme.

Porém, até chegarmos a esse final muitas coisas ainda terão que acontecer. Primeiro, a guerra, retratada com toda a grandiosidade (e um pouco de horror) que o cinema americano daquela época poderia conceber. Como espetáculo, …E o Vento Levou ainda se sustenta hoje: não é um filme de diretor, e se há um autor por trás deste épico do cinema é o produtor David O. Selznick. O lendário produtor descobriu o livro de Margaret Mitchell, escolheu Vivien Leigh e brigou com vários diretores até se conformar com Victor Fleming – que naquele mesmo ano também foi creditado por dirigir O Mágico de Oz (1939), outra produção tumultuada, grandiosa e marcante. Mas acima de tudo Selznick pôs o dinheiro na tela: cenas como o movimento de câmera que mostra centenas de soldados feridos, ou o incêndio de Atlanta, impressionam hoje pela complexidade da execução.

Além disso, é preciso lembrar que a fotografia em cores de …E o Vento Levou, gravado no processo do Technicolor em três faixas, chamou a atenção do público da época – junto com O Mágico de Oz, ambos foram os maiores espetáculos visuais daquele ano. O trabalho de figurinos e direção de arte também é superlativo, contribuindo para o apelo duradouro do filme.

Embora seja um espetáculo indiscutível, …E o Vento Levou possui alguns anacronismos e defeitos capazes de chamar a atenção. Por exemplo, hoje podemos perceber como o filme é idealizado e convenientemente evita o assunto da escravidão no Sul americano. Os personagens sulistas são mostrados não como bárbaros, mas como defensores de uma arraigada e valorosa tradição, e o filme vê os dias de escravidão e das grandes plantações sulistas americanas com nostalgia.

A caracterização dos personagens negros também é muito anacrônica. Basicamente eles só existem para servir aos mestres brancos e são todos subservientes e não muito desenvolvidos intelectualmente. A atriz Hattie McDaniel, a primeira afro-americana a ganhar um Oscar – no caso, de coadjuvante pelo filme, onde interpreta Mammie, a empregada de Scarlett – entrou para a história, mas sua interpretação é caricata, assim como a de Butterfly McQueen, que vive Prissy, a jovem empregada. Além disso, é curioso como, segundo o filme, o fim da guerra e a abolição da escravatura são meio ignorados – afinal, os negros continuam trabalhando para Scarlett e vivendo normalmente como se nada tivesse acontecido. Parece que a escravidão não acabou em Tara, ou pior, foi substituída por uma espécie de servidão voluntária…

No fim das contas …E o Vento Levou não é um filme sobre o declínio do Sul dos Estados Unidos – se fosse, seria mais interessante? Na verdade é um filme sobre o fim da infância e o amadurecimento de uma mulher. Mesmo quando tudo ao redor da personagem ameaça se tornar novelesco e clichê, e mesmo que o filme nunca chegue a alcançar o status de obra-prima do cinema, o público ainda se mantém interessado no drama de Scarlett O’Hara. A jornada de superação da personagem é comovente – o discurso “nunca mais sentirei fome novamente” é um grande momento cinematográfico – e a sua transformação de menina a mulher é a maior qualidade do roteiro.

Sendo assim, o aspecto mais incrível de E o Vento Levou é mesmo a atuação de Vivien Leigh. A atriz envelhece diante dos nossos olhos e consegue fazer de Scarlett uma pessoa real. E igualmente brilhante é a atuação de Clark Gable: o carisma do ator nos faz gostar do seu tipo rebelde, mas ao longo da história realmente acreditamos no seu amor por aquela mulher tão temperamental e intensa. Se hoje em dia E o Vento Levou ainda continua sendo visto e discutido, é por causa de Leigh e Gable. Seus desempenhos e a química entre os dois fazem deles um casal que vale a pena acompanhar pelas 3 horas e meia de filme – é uma pena que a primeira noite de amor entre eles seja outro momento anacrônico, com Rhett “pegando” Scarlett à força, o velho clichê machista que diz que qualquer mulher consegue ser “domada” por um homem e depois se sente feliz por isso.

Ao contrário das novelas inspiradas por E o Vento Levou, o filme ganha pontos por mostrar o relacionamento e o casamento dos dois de forma realista, com direito até a um final “quase infeliz”. Viver com Scarlett é realmente um inferno – pobre Rhett – e acompanhar o desgaste do casal, mostrado de forma madura e inteligente, acaba sendo outra grande qualidade do longa. Aqui o amor não vence tudo, pelo contrário: ele pode ser destruído pelas circunstâncias e pelo próprio comportamento daqueles que o sentem. A última e clássica fala de Rhett Butler no filme – “Francamente, querida, não dou a mínima”, quando Scarlett lhe pergunta o que deve fazer – indica o fim do amor.

Mas será mesmo? Inabalável, Scarlett não se rende – “Afinal, amanhã é outro dia”, outra fala icônica do filme – e conquista definitivamente o espectador. Há algo de belo e poderoso na sua determinação, e isso faz de …E o Vento Levou um filme querido e admirado por gerações. Pode não ser uma obra-prima, mas possui um núcleo emocional forte e, na maior parte do tempo, é um filme divertido, bom de se ver com a pipoca do lado. Às vezes, não se pode pedir mais do que isso de um filme.