Uma comédia romântica ambientada na… crise imobiliária americana de 2008? Pois é com essa premissa torta, quase cruel, que começa um dos maiores filmes da última década, e seguramente um dos grandes exemplares desse gênero no cinema: Amor sem Escalas, de Jason Reitman. Lançado em 2009, em pleno terremoto financeiro, o filme radiografa muito do sentimento de falta de rumo, de flutuação moral (daí o título original certeiro: Up in the Air, ou “nas nuvens”) que assolava o país então.

Enquanto filmes como Trabalho Interno (2010), Margin Call: O Dia Antes do Fim (2011) ou A Grande Aposta (2015) iluminam aquele momento trágico com o benefício da perspectiva, a obra de Reitman captura as consequências da crise no momento em que elas aconteciam. O protagonista, Ryan Bingham (numa grande performance de George Clooney) é um profissional especializado em demissões: seu ofício é garantir que esse momento terrível para qualquer pessoa seja processado com a maior suavidade possível. A empresa onde ele trabalha vive um momento eufórico – nunca se demitiu tanto nos Estados Unidos, e a tendência é “melhorar”, ou seja, ainda mais pessoas devem perder seus empregos.

Ryan também atua como consultor motivacional, aproveitando as viagens de trabalho para palestrar sobre sua filosofia de vida: nos acostumamos a encher a “mochila” de nossas vidas com coisas de que, na verdade, não precisamos – casa, carro, casamento, filhos, carreira, uma série de construções artificiais, que só nos alienam daquilo que realmente desejamos fazer, e nos tornam infelizes. A provar o próprio ponto, ele evita qualquer tipo de relação duradoura: não tem namorada, esposa, guarda o mínimo de mobília no próprio apartamento, mal vê os parentes. Mas, como sói acontecer, três eventos fortuitos irão abalar suas convicções: Ryan ganha uma aprendiz (e contestadora), Natalie (Anna Kendrick, de A Escolha Perfeita), que deseja implementar um sistema de demissões online, arrancando Bingham de suas tão amadas viagens; ele conhece Alex (Vera Farmiga, de Invocação do Mal), uma mulher de espírito igualmente independente, mas que o faz, pela primeira vez, considerar romper a bolha; e sua irmã Julie (Melanie Lynskey) se casa, levando Bingham a reencontrar os familiares, e a descobrir, para seu desgosto, que não passa de um borrão nas memórias de todos eles.

Dito assim, parece que a crise econômica é só um enfeite no arco bonitinho e feel-good do filme, mas não: tal como Casablanca (1942) entremeava o amor interrompido de Rick e Elsa com as cicatrizes da ocupação alemã na França, ou como Encontros e Desencontros (2003) trazia, sob a delicada aproximação de Bob e Charlotte, uma crítica ao distanciamento humano na era da hiperinformação, Amor sem Escalas não trata, diretamente, da crise econômica, mas ela permeia tudo no filme: Ryan e Natalie, afinal, são os “demissores”, e as implicações desse trabalho criam algumas das cenas mais pungentes do longa, como o diálogo com o personagem de J. K. Simmons, ou os depoimentos de vários dos demitidos, que explicam o que os leva a seguir em frente. Mas, tal como esses antecessores, Amor sem Escalas trata de problemas mais atemporais e permanentes: nossa ânsia (e talvez de impossibilidade) de autorrealização, as incompatibilidades amorosas, as dúvidas que afligem quem se lança num relacionamento. E não se engane: por trás da aparência leve, elegante, quase diáfana do filme – um pouco como o próprio Ryan –, um fundo de tristeza enorme domina os desfechos das situações.

O casamento inesperado da crise econômica com uma comédia agridoce, ágil e cheia de diálogos cortantes, à Tracy/Hepburn, confirmou a ousadia e versatilidade do diretor e roteirista (com Sheldon Turner) Jason Reitman. Vindo de dois trabalhos elogiados, Obrigado por Fumar (2005) e Juno (2007), ambos sensações no circuito mais alternativo, Reitman emplacou seu nome no mainstream, e prometia engatar uma trajetória brilhante a partir dali. Infelizmente, seu filme seguinte, Jovens Adultos (2011), embora com texto, direção e atuações no mesmo nível das deste aqui (sobretudo uma Charlize Theron irretocável no papel principal), não conseguiu se conectar com o público no mesmo nível agudo de Juno e Amor, o mesmo acontecendo com os irregulares Refém da Paixão (2013) e Homens, Mulheres e Filhos (2014).

Seus protagonistas tiveram melhor sorte: Clooney se provou não apenas um ator e diretor de enorme talento, como também uma das figuras mais responsáveis de Hollywood, apoiando campanhas em prol dos direitos humanos e da transparência na política americana; Farmiga, por sua vez, deixou o nicho alternativo para emplacar sucessos como o thriller Invocação do Mal (2013) e a elogiada série Bates Motel (no ar desde 2013); Kendrick mostrou talento também como cantora, e suplantou sua participação na série Crespúsculo com musicais como Caminhos da Floresta (2014) e o já citado A Escolha Perfeita (2012); e dois atores hoje cultuados no drama e na comédia têm pequenas e valiosas participações: Simmons, que já citamos lá em cima (ganhador do Oscar em 2015 por Whiplash: Em Busca Perfeição) e Zach Galifianakis, o inesquecível Alan de Se Beber, Não Case (2009).

Somados às cenas icônicas em aeroportos e aviões, metáforas visuais perfeitas para a incerteza e isolamento do protagonista Ryan Bingham, que ganhariam paródias em seriados como Os Simpsons, mais a trilha marcante, com nomes Sharon Jones e Dan Auerbach (dos Black Keys), e temos um daqueles filmes que marcam não apenas uma época, mas as vidas de gerações de espectadores que se dispuserem a conhecê-lo. Talvez seja cedo para afirmar que Amor sem Escalas é um desses casos, mas, entre tantos filmes que eu já vi desde então, poucos se prestam tão bem ao posto. Assista, e depois me conte.