Não é incomum produções que prometem representar uma parte da sociedade normalmente esquecida pelos seus semelhantes. O longa-metragem “Arábia” envereda por esse caminho já percorrido, mas diferente de tantos por aí, a produção de João Dumans e Affonso Uchoa tece com louvor à miséria de um povo que se vê fadado a subsistir dia após dia. Com fortes referências da literatura nacional de nomes como Graciliano Ramos e João Antônio, escritores que tão bem retrataram a condição do homem relegado às margens, a vontade de usar a visão da pessoa comum, do trabalhador como protagonista, foi certeira.

“Arábia” é resultado da parceria entre os mineiros Uchoa e Dumans, ambos responsáveis tanto pela direção quanto roteiro do trabalho. Os cineastas já haviam colaborado em “A Vizinhança do Tigre” projeto anterior responsável pela estreia de Affonso Uchoa na direção. Foi durante a produção desse longa, a qual durou cerca de cinco anos, que nasceu a ideia primária de criar algo que falasse das origens dos realizadores, as cidades de onde vieram e como elas se conectavam. Mas foi graças a outro mineiro, Aristides de Sousa, parceiro de longa data da dupla e protagonista das duas produções, que o projeto ganhou os contornos visto no resultado final. Foi o ator-não-profissional a inspiração para construção da peça principal.

O drama conta a história de Cristiano (Aristides de Sousa), jovem de origem da periferia de Contagem, Minas Gerais. Depois de sofrer um acidente na fábrica em que trabalhava e ser hospitalizado, tem seu diário encontrado pelo sobrinho de uma enfermeira do local, nele conta as aventuras e desventuras vividas nas suas andanças em busca de trabalhos e algum sentido na vida.

O filme inicia com a visão do jovem Andre (Murilo Calieri) percorrendo de bicicleta a estrada que dá caminho a Ouro Preto. O primeiro momento da narrativa concentra-se no garoto, morador das redondezas de uma fábrica de alumínio, lugar em que Cristiano sofrera o acidente, e sobrinho da enfermeira responsável pelos trabalhadores do local. Vemos ele em momentos de interação com a tia e o irmão mais novo, e até mesmo com o operário, quem o espectador só reconhece depois, quando a enfermeira oferece carona para ele. Logo depois, é pelos olhos do garoto que se vê Cristiano ser levado em uma maca desacordado.

O ápice de Andre na narrativa vem quando este é enviado à casa do operário hospitalizado, para buscar alguns objetos pessoais dele, momento em que, pelo acaso, encontra as memórias do homem misterioso que tanto ele como a audiência pouco sabem. O jovem é apenas o condutor narrativo para a verdadeira história, àquela contada nos diários de Cristiano. O espectador passa, então, a acompanhar a jornada conturbada daquele rapaz comum de muitos, mas invisível para outros.

Por meio da narração em off feita pelo protagonista, aqui muito bem utilizada, diga-se de passagem, somos transportados da introdução de poucos diálogos de Andre, para a voz de Cristiano, narrando em primeira pessoa tudo aquilo que colocou no caderno. As memórias evocam o início da juventude marginalizada, a qual culminou na sua prisão durante pouco mais de um ano. A tentativa de recomeço depois de ser reinserido na sociedade e o trabalho em uma plantação de tangerina, a paixão pela colega de trabalho, Ana (Renata Cabral), e a sua caminhada nas tentativas de sobreviver, pulando de emprego a emprego.

“Arábia” é belo e bem-sucedido naquilo que se propõe, retratar a classe trabalhadora brasileira. E o faz de maneira bem específica, apesar de tratar a realidade comum de uma parcela enorme de brasileiros excluídos onde a rotina é sobreviver, não é colocada na tela de forma genérica, um retrato à distância, pelo contrário, o reflexo é muito próximo, é verdadeiro e inventivo no seu enredo. Cristiano inúmeras vezes tenta se estabilizar, mas essa realidade nunca parece possível diante dos empregadores abusivos, demissões sem causa, o amor que não dá certo, até a necessidade de fugir da vida e si mesmo, mas sempre ao modo.

A existência carrasca é mostrada simultaneamente à narração serena do jovem. Cada palavra lida daquele caderno remete à tragédia que é a realidade em que Cristiano está inserido. Ainda assim, ele não grita, não é nutrido de raiva, apesar do questionamento estar ali, sendo exatamente como esses milhões de brasileiros assistindo à própria vida. A voz é verdadeiramente de Cristiano, não há espaço para discursos inflamados das reflexões políticas do diretor ou roteirista, além de não existir prevalência da fala quanto ao seu interlocutor.

A escolha de Aristides ou Juninho Vende-se, como prefere ser chamado, para o papel principal sintetiza bem a proposta dos cineastas, uma vez que, nas palavras dos dois, o papel foi feito para ele. A atuação espontânea e sem presunção garante ao seu personagem a coerência com a realidade, talvez porque essa é a verdade para o ator. Dono de uma vivência cruel, foi preso inúmeras vezes, inclusive durante a realização do filme, o que preocupou bastante os diretores, visto que tinham construído a narrativa em cima dele. Levou cinco tiros, foi internado em centros socioeducativos, mas com a manha de quem precisa continuar vivendo, conseguiu um papel em um filme e posteriormente o levou prêmio de Melhor Ator por “Arábia” no Festival de Brasília.

Em contraponto aos infortúnios da vida de gado de Cristiano, há momentos de genuína felicidade e até de alívio para a dureza exposta. Cenas como a do rapaz durante um de seus bicos, cai na conversa com outro trabalhador sobre o que seria fácil ou difícil de carregar na labuta. Ou a dos colegas de construção reunidos fumando um baseado e cantando ao violão “Cowboy Fora-da-Lei”.

Aliás, a trilha-sonora é um deleite e acompanha intimamente o enredo. De Maria Bethânia à Racionais, essa interpretada pelo protagonista acompanhado do violão, todas as músicas dialogam com afinidade o que é mostrado e dito. A sequência em que se vê um senhorzinho em um palco improvisado cantando “Marina” de Dorival Caymmi, remete ao trabalho de Eduardo Coutinho, outro artista marcado por dar voz ao povo, no seu belíssimo “As Canções”, documentário sobre pessoas comuns e seus dramas relembrados por meio da música.

Outro ponto forte do filme é a direção de fotografia de Leonardo Feliciano, responsável também por “Branco Sai, Preto Fica”. Com tom acinzentado e sombras fortes, não é raro durante o longa frames remeterem a uma pintura que parece querer recriar a “natureza morta” daquilo que simboliza a condição do ser operário.

A odisseia protagonizada por Juninho Vende-se é firme na sua exposição das dificuldades vividas pelo cidadão marginalizado, constantemente exposto às condições péssimas de trabalho, destinado a trabalhar e trabalhar sem nada receber. Embora trate-se de ficção, o tom documental é existente, seja nas sequências do jovem pelas estradas ou sua narração dos acontecimentos. Mergulhamos na solidão desse indivíduo explorado pela sociedade, à medida que ele desvenda seus desejos e frustrações. O final amarra bem a desconstrução do protagonista, as tentativas de entendimento da própria existência no decorrer da sua jornada. Por fim chega a compreensão, a epifania de Cristiano.