Fim de reserva ambiental para exploração mineral, suspeita de massacre em comunidade indígena, alta no desmatamento… o noticiário das últimas semanas ilustra o momento delicado enfrentado pela Amazônia e populações que a habitam. O drama da região, entretanto, está longe de ser uma questão atual: o próximo trabalho do cineasta amazonense, Aurélio Michiles, ilustra bem este cenário predatório.

Ganhador do edital de cinema do BNDES, o documentário “Em Nome Desta Terra” irá resgatar um caso ocorrido no boom da borracha. Em 1910, o cônsul britânico no Brasil, Roger Casement, denunciou os maus-tratos contra as populações indígenas no trabalho da coleta da borracha na tríplice fronteira do Brasil, Peru e Colômbia. Para a extração de 4 mil toneladas do material, 30 mil índios acabaram mortos. Intitulado “Diário da Amazônia”, o relatório provocou escândalo no mundo inteiro, sendo um dos pioneiros a tratar sobre os Direitos Humanos na região.

A lista de entrevistados conta com nomes de peso: o mestre da literatura peruana, Mario Vargas Llosa, o escritor amazonense Milton Hatoum, o historiador Angus Mitchell-Irlanda, o crítico de literatura irlandês, Luke Gibbons, o antropólogo colombiano, Carlos Páramo Bonilla, além de descendentes da tribos vítimas do massacre.

Segundo o diretor, gravações esporádicas já foram feitas na Irlanda e em São Paulo. “O processo de produção de um documentário é constituído de ações permanentes, algo como um coletor numa floresta, ficamos permanentemente atentos aos fatos e todas as vezes que surge uma oportunidade, consideramos que ela seja única e portanto devemos registrá-la. É isso que tem acontecido”, disse.

Aurélio Michiles, diretor de "Tudo por Amor ao Cinema", documentário sobre Cosme Alves NettoIndígenas esquecidos: tônica da Amazônia

Aurélio Michiles revelou que o interesse pelo ciclo da borracha na Amazônia ocorre por ter sido da última geração de manauaras a vivenciar as marcas daquele período. Como exemplo, ele ilustra as brincadeiras que teve na infância nos interiores dos casarões abandonado, além de conversar com pessoas que viveram o auge daquele período. O esquecimento relegado à presença indígena neste momento, porém, sempre instigou o diretor.

“Eles (indígenas) eram protagonistas deletados desta historia, mas não somente da memória seletiva da cidade, mas da região amazônica e até mesmo nos compêndios sobre a historia econômica do Brasil, ainda hoje, é reservado muito pouco sobre a importância desta planta na revolução que ela causou no século passado”, afirmou Michiles.

Para o diretor, “Em Nome desta Terra” vai buscar perguntas para revelar os meandros da geopolítico da borracha no contexto da economia mundial do século XX, algo já feito, segundo ele, nos os documentários anteriores da carreira, “A Árvore da Fortuna” (92), “O Cineasta da Selva” (97), “Teatro Amazonas” (2002).


Estilo político combativo e o Amazonas

A escolha de um tema tão delicado condiz com a postura política de Aurélio Michiles nas redes sociais. Sempre combativo, o cineasta atrai muitas curtidas e compartilhamentos no Facebook com postagens críticas sobre o atual momento do Brasil. O diretor considera que tanto a política quanto a arte fazem parte do cotidiano e não podem ser separadas.

De acordo com Michiles, esse lado politizado começou aos 13 anos em que editava jornais, participava de programas de rádio, exposições e até fazer parte da diretoria das entidades representativas dos estudantes amazonenses. “Sou da geração que passou a juventude em uma ditadura. Nada sabíamos do que era viver numa democracia, isto para nós era um sonho a ser conquistado. Tudo, mas tudo mesmo, poderia ser censurado, proibido. Em cada lugar, sobretudo nas escolas, havia um espião pronto para te dedurar e acusar de “subversivo”. O medo era a senha que um regime de exceção disseminou na população, uma espécie de terrorismo. Fazer arte ou política era um desafio, corria-se o risco de prisão, tortura, exílio e até mesmo de morte, como aconteceu com muitas pessoas. Neste sentido, éramos transgressores, habitávamos o “underground” e daí atirávamos nossas flechas incendiárias”, afirmou.

Para “Em Nome Desta Terra”, Michiles promete manter esta pegada combativa. “Em todos os meus trabalhos você vai encontrar essa “pegada” arte-politica, neste filme não será diferente, mesmo porque Roger Casement foi um revolucionário, afinal ele é um dos pioneiros da revolução da Irlanda e, por causa disso, foi sentenciado a morte. Neste “Diário da Amazônia”, em certo momento, ele escreve que os irlandeses são como fossem os índios, vivem sob uma implacável ocupação estrangeira, com suas terras tomadas pelos seringalistas e condenados a produzir riqueza e morrer de fome. O império britânico ocupou a Irlanda desde 1075, tomou as terras e deu aos protestantes, enquanto que os irlandeses morriam miseravelmente de fome”, declarou.

Mesmo morando em São Paulo há décadas, as raízes amazonenses nunca foram apagadas pelo diretor. Justamente o contrário aconteceu com isso refletido em suas obras: “Meus projetos são como o Rio Amazonas: de algum modo, desaguam e se alimentam deste rio-mar. Faz muitas décadas que sai de Manaus, mas, ela, a cidade e a memória que tenho deste lugar se encontram permanentemente em mim, todos os dias”, completa.

A previsão inicial é que “Em Nome Desta Terra” chegue aos cinemas em 2019.