Há filmes que parecem ser produzidos para que não sejam vistos tal sua proposta inaudita. Contudo, só parecem, porque todo filme, independente de seu gênero, temática ou produção, quando realizado necessitam (ou desejam) serem vistos por qualquer (ou todas as) pessoa(s). Há filmes que, por sua proposta inusitada ou fantástica, parecem ser destinados a guetos específicos, públicos isolados, como podem ser os filmes toscos ou trash. Mas, neste caso, também o filme que quero comentar não se encaixa: sua produção é rica, composta por profissionais e atores de relevância e sua pretensão diegética de âmbito internacional. A pretensão, surpresa ou ineditismo da obra lhe impõe um quê de curiosidade já no título: Homens & Galinhas (título traduzido literalmente), do dinamarquês Anders Thomas Jensen, produzido em 2015.

O diretor Anders não é um iniciante e tampouco alguém não tão distante do sucesso. Porém, fazia dez anos que ele não assumia a direção de um filme; sua interface com o cinema foi como roteirista (e ele tem em seu currículo mais de 40 títulos assinados) de filmes de Nicolaj Arcel (O Amante da Rainha), Cristian Levring (O Rei Está Vivo), Saul Dibb (A Duquesa), Jannik Johansen (Mistério da Vila) e principalmente com Susanne Bier [roteiro de Brothers (04), Depois do Casamento (06), Em Um Mundo Melhor (10), Amor É Tudo O Que Você Precisa (12) e Segunda Chance (14)]. Nem os mais de 20 prêmios internacionais conseguidos com seu filme anterior – Entre o Bem e o Mal (05) – pareciam lhe cobrar uma nova realização, que acabou sendo Homens & Galinhas. É importante frisar que, se julgarmos apenas o trabalho de roteirista de Anders nos filmes de Bier, nada poderia indicar o tom irônico, insólito e de sarcasmo que habita seus filmes. Penso que é isto que o conduz à condição de artista – sua criatividade e poder de inovação.

No filme, Gabriel (David Dencik) e Elias (o premiado Mads Mikkelsen) são irmãos, mas bastante desiguais, pois filhos de mães diferentes. Enquanto Gabriel é um desgastado professor universitário, Elias é um homem simplista, com preocupações pouco além das triviais. Pouco se falam até terem conhecimento de que seu pai morreu. Após o funeral, os irmãos descobrem por um vídeo deixado pelo falecido que ele na verdade não era o pai biológico dos dois. Ante surpresos e agora unidos, eles descobrem que seu verdadeiro pai mora numa ilha praticamente deserta (Ork) e decidem ir ao local, onde conhecem sua verdadeira família. O encontro repleto de pessoas anormais, onde descobrem a verdade sobre si mesmos e seus parentes, os deixa em choque. Porém, logo Gabriel se encarrega de promover o relacionamento possível dos agora cinco irmãos ao instaurar regras de convivência a serem seguidas. Tudo para que descubram em meio a algumas situações bizarras um segredo obscuro da família no porão envolvendo experiências com animais.

Os atores, vivendo os protagonistas, têm aparência já um tanto estranha: ambos têm lábios leporinos e feições esquisitas, mas Elias demonstra possuir um QI sofrível. Abro um parêntese para dizer que Mads Mikkelsen está irreconhecível no bigode ruivo e peruca encaracolada. As esquisitices de ambos se revelam normais no conjunto de fatos que se sucedem ao conhecerem o habitat de sua verdadeira família. As demais personagens, vivendo num ambiente que lembra um sanatório de filme de terror, se apresentam num misto de extrema caricatura ingênua e performance de violência. Aliás, a forma de comunicação entre eles é a violência, elemento forte de nossa sociedade, para o qual Anders parece nos alertar dado que é algo imperceptível entre nós. Vários atores do filme participaram dos filmes anteriores de Anders, igualmente em personagens sempre “diferentes” nas tramas ousadas do diretor e que chegaram a “abalar” suas carreiras: em The Green Butchers (03), vivem açougueiros que se especializaram em vender carne humana; em Entre o Bem e o Mal (05), vivem a relação complicada de um neonazista e um padre, na confecção de uma torta de maçã!

Para além do humor cáustico desta história bastante inverossímil, de desajustados que desejam conhecer sua origem, Anders parece nos indagar o quanto de animal existe dentro de nós, humanos, capaz de nos embrutecer e não perceber a leveza da alma. Ou o quanto precisamos nos ver como parte da estrutura animal (natureza) para descobrir nosso comportamento humano. Numa leitura mais metafórica, ouso dizer que o filme, com excelente ironia, propõe repensar se precisamos buscar nossa origem para nos reconhecer como humanos. E se descobrirmos – como propõe – que temos mais ligação com o chão (como os animais), o solo, refletir sobre o que é essa base, qual é a base de nossa identidade. A própria localização isolada de uma ilha deserta de habitantes nos convida a refletir nossa ilha interior, quase em colapso pelo crescente individualismo presente nas sociedades modernas.

Convidamos todos a verem este filme que seguramente vai dividir opiniões. Também é bastante improvável que o filme seja exibido nos circuitos comerciais de cinema brasileiros, mesmo que ele já tenha conseguido 10 prêmios em festivais e mostras internacionais, dentre eles o de Melhor Diretor nos festivais de Monte Carlo e do Cinema Fantástico de Austin, e Melhor Filme Fantástico Europeu no Festival de Neuchâtel (Suíça).

Homens & Galinhas é um filme curioso, especial e insanamente ótimo. Certamente, um filme para assistir mais de uma vez.

*a coluna Pensando Sobre o Cinema retorna no próximo dia 28 de maio.

**Texto original alterado para substituir a equivocada expressão humor negro.