É curioso como funciona a percepção do público, e até de alguns cinéfilos, sobre a autoria dentro do cinema. Todo mundo reconhece de cara um blockbuster de Steven Spielberg, um filme de máfia de Martin Scorsese, um drama pesado de Ingmar Bergman, um suspense sombrio de David Fincher, uma dramédia de Woody Allen. Mas… e um filme do Sidney Lumet, por exemplo? Você tem que ler os créditos para saber que ele é o diretor, mesmo Lumet tendo feito obras tão sensacionais quanto as de qualquer um dos mencionados acima. Alguns diretores de cinema são capazes de fazer de tudo, e de maneira fácil, e curiosamente estes, muitas vezes, não são tão valorizados quanto os outros que possuem estilos e especialidades mais identificáveis.

Jonathan Demme é um desses casos. O recém-falecido diretor, vítima de câncer de esôfago e problemas no coração, era um cineasta versátil que se aventurou por diferentes searas: começou no exploitation, fez videoclipes e documentários – e se manteve fiel ao documentário mesmo depois de ficar famoso – e, dentro da ficção, fez comédias, dramas e suspenses. Deve mesmo entrar para a história como diretor do já clássico O Silêncio dos Inocentes (1991), e é merecido, pois seu trabalho ali é simplesmente espetacular, no mesmo nível daqueles grandes nomes mencionados lá no começo. Mas ele não fez só o filme que revelou para o mundo Clarice Starling e Hannibal Lecter, e para reverter um pouco essa desvalorização de cineastas versáteis, nada melhor do que conhecer a fundo as suas filmografias.

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O começo: Mulheres encarceradas e irreverência

Demme nasceu em 1944, em Baldwin, Nova Jérsei.   O cineasta de vida bem discreta começou a carreira nos anos 1970 e era egresso da “Universidade Roger Corman”, ou seja, aprendeu a trabalhar na prática, roteirizando e depois comandando produções sensacionalistas e de baixo orçamento sob a supervisão atenta do lendário Corman, o rei do “filme B” americano. Entre outros egressos dessa “universidade” podemos citar nomes como os de Francis Ford Coppola, James Cameron, Ron Howard e o próprio Scorsese.

O primeiro filme com o nome de Demme como diretor é o cult Celas em Chamas (1974), ambientado numa prisão com várias detentas sensuais – mais Roger Corman, impossível. Seguiram-se Loucura da Mamãe (1975), com a vencedora do Oscar, Cloris Leachman, e Pelos Meus Direitos (1976), com Peter Fonda, ambos na onda do exploitation e muito irreverentes.

O primeiro trabalho para um grande estúdio – no caso, a Paramount – de Demme foi Nas Ondas do Rádio (1978), comédia ambientada na “pequena América”, o interior do país, e sobre as mudanças que logo a transformariam. Seguiram-se o suspense O Abraço da Morte (1979), o primeiro do cineasta, e uma nova comédia, Melvin e Howard (1980), que ganhou dois Oscars, Melhor Roteiro e Atriz Coadjuvante para Mary Steenburgen. A história do maluco Melvin (um inspirado Jason Robards) que acreditava ter direito à herança do magnata Howard Hughes ajudou a projetar o nome de Demme, e na década seguinte sua carreira deslancharia de vez.

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Os selvagens anos 1980

Na nova década, Jonathan Demme começou a se aventurar pelos seriados de TV e videoclipes – dirigiu vídeos de bandas como Pretenders, New Order e Talking Heads. O líder desta última, o malucão David Byrne, chamou Demme para gravar um concerto da banda e o resultado foi Stop Making Sense (1984), um dos documentários musicais mais emblemáticos da década, que também representou o auge da banda. Demme mostrava os músicos nos bastidores, trocando de roupa, ensaiando, e toda a correria por trás do show, numa experiência empolgante. Foi, obviamente, um trabalho marcante para o diretor, que nunca mais deixaria de fazer documentários musicais – seu último trabalho foi justamente um deles, Justin Timberlake + the Tennesse Kids (2016), para a Netflix, estrelado pelo astro pop.

No cinemão, ele continuou como diretor de comédias de sucesso. Armas e Amores (1984) hoje em dia é mais lembrado como o filme no qual Kurt Russell e Goldie Hawn se conheceram e se apaixonaram – estão juntos até hoje. Mas Totalmente Selvagem (1986) é um dos cults da década, uma comédia maluca e charmosa sobre a aventura de um “yuppie” (Jeff Daniels) que conhece uma moça maluca (Melanie Griffith, irresistível com seu cabelo chanel) e, depois, o ex-marido dela. Divertido, Totalmente Selvagem é a melhor comédia do diretor, mas o simpático De Caso com a Máfia (1988) também rende umas risadas. É estrelada por outra atriz irresistível, Michelle Pfeiffer, e chegou a passar em algumas Sessões da Tarde na Globo.

Anthony Hopkins em cena de "O Silêncio dos Inocentes", de Jonathan DemmeA vida após o Silêncio

Pfeiffer, aliás, era a favorita do diretor para o papel de Clarice Starling em O Silêncio dos Inocentes, seu projeto seguinte. Mas ela não quis participar de um projeto com tema tão perturbador. Pouca gente levava fé no filme, mas Demme sabia que tinha uma grande história nas mãos, uma que falaria sobre o interior do país, um dos seus primeiros temas, e sobre a maldade presente nas pequenas cidades e nas grandes também. Jodie Foster ficou com o papel da agente do FBI Clarice, e o inglês Anthony Hopkins deu vida a um dos grandes psicopatas do cinema, Hannibal Lecter, o único que pode ajudar a heroína a deter um mal ainda maior.

Todo mundo elogia Foster e Hopkins, claro, e seus Oscars foram mais do que merecidos. Mas o trabalho de direção de Jonathan Demme no filme é tão bom quanto o deles: seu uso de closes e pontos de vista constituem verdadeiras aulas de cinema, e o fato de ele deixar os momentos mais violentos e assustadores para a imaginação do espectador também contribuiu para o impacto da obra. É um trabalho de direção digno de estudo. Não esquecendo suas origens, Demme chama Roger Corman para uma ponta como o diretor do FBI, a comprovação de que cinema é um eterno aprendizado. O Oscar de Melhor Diretor para Demme foi igualmente justo.

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Porém – e nem todos se lembram disso – na época O Silêncio dos Inocentes foi polêmico, acusado de retratar travestis e homossexuais como vilões e monstros, uma acusação que não se sustenta realmente. Mas essas críticas devem ter afetado o cineasta, que escolheu como seu próximo projeto o drama Filadélfia (1993), sobre a luta nos tribunais de um advogado gay contra a firma que o demitiu quando descobriu o seu contágio pelo vírus da AIDS. Por ser um dos primeiros filmes de Hollywood a discutir honestamente temas como homossexualidade e o impacto da doença, que, na época, era bastante temida, Filadélfia ainda é um pouco tímido, parece ter medo de ofender algumas sensibilidades em determinados momentos. Mas é um filme de qualidade inegável, ancorado pelos grandes desempenhos de Tom Hanks (que ganhou aqui seu primeiro Oscar) e Denzel Washington.

Meryl Streep em Ricki and the Flash - De Volta Para CasaOs longas de ficção de Demme depois de Filadélfia não alcançaram tanta repercussão. Bem Amada (1998) foi ignorado pelo público, apesar da presença de Oprah Winfrey; o suspense O Segredo de Charlie (2002) é um filme que o tempo felizmente esqueceu, é o pior do diretor; e Sob o Domínio do Mal (2004) era um remake meio desnecessário do clássico suspense de 1962. Mas marcou o reencontro de Demme com Washington e a sua primeira vez dirigindo o ícone das telas Meryl Streep. Os dois voltariam a trabalhar juntos no divertido Ricki and the Flash: De Volta Para Casa (2015), que seria o último longa de ficção do cineasta.

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Entre eles, Demme realizou o seu melhor filme pós-Silêncio, o sólido drama familiar O Casamento de Rachel (2008). Mesmo se perdendo um pouco na última meia hora, o filme é um retrato realista, filmado por uma câmera irrequieta, dos conflitos de uma família, especialmente em relação à filha mais nova e ex-drogada, vivida por Anne Hathaway num desempenho vivaz e merecidamente indicado ao Oscar. Demme filmou esse longa ficcional com a mesma pegada dos seus conhecidos documentários, resultando numa experiência forte e muito autêntica.

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Um autor? Isso importa?

O Casamento de Rachel foi roteirizado pela filha de Sidney Lumet, Jenny, o que nos traz de volta ao raciocínio do começo deste texto. Tal como Lumet e vários outros nomes da história do cinema, Jonathan Demme era um daqueles cineastas sem um “estilo” facilmente identificável, não trabalhava sempre dentro dos mesmos gêneros ou temas e parecia se adequar às histórias que contava, ao invés de adaptá-las ao seu “tipo” de filme. Isso não diminui o seu valor: Demme era um cineasta no verdadeiro sentido do termo, aventureiro e produziu ao menos um clássico, e vários outros trabalhos de valor. Um contador de histórias, e contou-as bem, na maioria das vezes, iluminou algumas arestas do comportamento humano em suas obras, e parecia se divertir muito trabalhando. Isso é o que importa.

Às vezes, público e fãs de cinema parecem ficar muito obcecados com a teoria do autor e esquecem o quanto é difícil ser um diretor “camaleônico”. Por isso, Jonathan Demme fará falta.