Tinha tudo para dar certo: Diego Bauer, recém-saído do ótimo “Obeso Mórbido”, adaptando um conto de Diego Moraes, escritor amazonense cercado de polêmicas, mas, de uma habilidade ímpar para construção de narrativas altamente descritivas, sarcásticas, sem qualquer tipo de pudor e potentes do underground de Manaus, e com Isabela Catão, uma atriz com trabalhos brilhantes no cinema local, de protagonista.

Some ainda Francisco Ricardo (diretor de arte premiado em Gramado por “O Barco e o Rio”), César Nogueira (diretor de fotografia indicado ao prêmio da Associação Brasileira de Cinematografia em 2015) e Pablo Araújo (vocalista da Luneta Mágica e, aqui, responsável pela trilha musical).

Tudo perfeito para render um filmaço, certo? Bem, nem sempre o melhor elenco faz um grande time e “Enterrado no Quintal” deixa a impressão de que, mesmo com qualidades indiscutíveis e longe de ser uma bomba, poderia ter rendido um resultado melhor.

“Enterrado no Quintal” é, antes de mais nada, uma história de vingança, daqueles clássicas mesmo, vista lá atrás nos faroestes até os dias de hoje em “Kill Bill” e “O Regresso”. Durante os 15 minutos de filme, acompanhamos ao longo de um dia uma personagem sem nome, interpretada por Isabela Catão. A obsessão dela é encontrar e matar o pai para vingar a mãe, agredida durante anos de casamento ao ponto de ser surda do lado direito por conta das sucessivas violências. A caçada ocorre no bairro do Lírio do Vale, zona oeste de Manaus, onde o caos e a urgência urbana se misturam com a presença religiosa massiva em um caldeirão prestes a explodir.

ECOS DE ‘O TEMPO PASSA’ PARA O BEM E O MAL

Para quem acompanha a carreira de Diego Bauer na direção, percebe-se claramente em “Enterrado no Quintal” uma forma de expandir a parte inicial de “O Tempo Passa”, segundo trabalho dele na função de diretor de curtas. No filme de 2016, os minutos iniciais são dedicados ao bairro da Compensa, suas particularidades e seus moradores. São registros do cotidiano, mas, que guardam simbolismos sobre a vida daquelas pessoas e abismos sociais.

Quatro anos depois, esse olhar se volta para o Lírio do Vale e, sem contar com nenhum tipo de recurso de edital, “Enterrado no Quintal” utiliza a seu favor a estratégia do cinema de guerrilha para captar esta região. A câmera balançando, sempre na mão, de movimentos rápidos e abruptos, ora desfocada, observando detalhes da velocidade atropelada, quase caótica do bairro junto com a escuridão de seus becos e vielas costura essa teia intrincada, marginal, suja e incômoda em uma adaptação visual quase precisa dos contos de Diego Moraes. Além da fotografia de César Nogueira, há de se aplaudir também o trabalho de som direto de Heverson Batista, todo o desenho e mixagem feito por Lucas Coelho, responsáveis por amplificar essa sensação de desordem, e a trilha musical de Pablo Oliveira, carregada de agonia e melancolia que o filme busca ter.

Porém, tal qual “O Tempo Passa”, o roteiro não está à altura das qualidades técnicas de “Enterrado no Quintal”. Se no primeiro filme, Bauer tocava no delicado assunto do abuso sexual contra adolescentes, aqui, ele aborda a violência contra as mulheres, mas, novamente, tudo superficialmente, mais a serviço da forma do que o conteúdo. Ainda que parta de um início forte com o estridente choro de um bebê gritando mãe enquanto vemos fotos e mais fotos daquela família, o curta não se aprofunda nas marcas da dor de sua protagonista além das físicas e externas, sendo ela uma figura que beira o unidimensional em sua caçada por vingança, algo compreensível em uma aventura como “O Regresso”, mas, que empalidece diante das pretensões sociais mais abrangentes propostas pelo curta amazonense. Pouco se explora o impacto do ódio na formação dela, em como aquilo moldou a sua personalidade a ponto de decidir exterminar seu algoz, elementos presentes no conto de Moraes.

Há o ódio, sedento de sangue marcado pela presença constante do vermelho em cena e mais nada. Desta forma, Isabela Catão pouco pode fazer para desenvolver mais a personagem, sendo isso ainda mais evidente pelo contraste com a protagonista de “O Barco e o Rio”, uma figura tão silenciosa quanto, porém, de uma complexidade absurda. Com tantas inconsistências, não é à toa que o clímax seja tão vazio de emoção nem desperte a angústia e empatia no público como pretendido.

Ao tentar expandir o universo da trama, “Enterrado no Quintal” até acerta, ainda que não se aprofunde, ao retratar a trágica ironia da onipresença da Igreja e suas mensagens religiosas circundarem um universo de violência e intolerância, funcionando como um retrato de uma sociedade caótica e hipócrita. Por outro lado, o curta tropeça nos próprios pés quando, ao mesmo tempo, aponta uma roda cíclica de violência, dialogando com o final do filme, misturada a uma cutucada política contra o governo Bolsonaro que simplesmente quebra o ritmo de tensão e a atenção do público no foco da trama. Um momento que poderia ter caído na sala de montagem sem grande sacrifício.

Pode até valer como exercício para seus realizadores e de apontar caminhos para o audiovisual local olhar com mais atenção para os pequenos universos presentes em bairros periféricos como o Lírio do Vale, porém, “Enterrado no Quintal” deixa um sabor amargo de que poderia ter sido bem melhor com um roteiro mais trabalhado.

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