Uma citação do escritor norte-americano Charles Bukowski diz “Dou duas voltas no quarteirão, encontro duzentas pessoas e nenhuma criatura humana”. Realmente, o conceito de humanidade não é tão simples de compreender. Se para ser considerado humano basta ser bípede, possuir “telencéfalo desenvolvido e polegar opositor”, como se dizia no clássico nacional Ilha das Flores (1989), então será que somos mesmo uma criação tão especial do Universo? O Universo é vasto… Podem existir coisas capazes de parecer com seres humanos. Ora, o fato de vivermos numa sociedade que parece valorizar a uniformidade de pensamentos, ideias e até de aparência física indica que, se um dia fossemos invadidos por uma força capaz de suprimir nossa humanidade, já teríamos feito metade do trabalho para ela.

Se é a própria individualidade o que nos torna únicos e humanos, o temor de perdê-la é o sentimento subjacente em muitas histórias de terror. Talvez mais do que o medo da morte, é este sentimento que move as histórias de zumbis – o temor de fazer parte de um bando, de uma horda acéfala, e a maioria de nós não se acha acima disso, não nos achamos especiais o bastante para não ser parte da massa? Pode não ser grande coisa, mas nossa individualidade é nossa e não queremos perdê-la. Ou, pelo menos, não deveríamos querer perdê-la. Vampiros de Almas (1956) e sua refilmagem, Invasores de Corpos (1978), exploram esse sentimento em suas respectivas épocas. Assim como O Enigma de Outro Mundo, a maior realização do mestre John Carpenter. Talvez seja o filme que melhor explore a luta do ser humano para evitar se transformar numa “coisa”, algo que só parece uma pessoa, mas no fundo não é.

O filme abre com a visão de uma paisagem gélida. Carpenter situa seu drama numa estação de pesquisa americana na Antártida. Os pesquisadores residentes ali assistem estarrecidos a uma cena incomum: um helicóptero de origem norueguesa perseguindo um cachorro em fuga na imensidão branca. Tudo acaba em destruição e o cachorro encontra um refúgio dentro da estação americana – se quisermos achar um furo no roteiro de Bill Lancaster, é esse, o bicho fica muito à vontade dentro de uma estação científica…

Decididos a investigar, alguns dos cientistas partem para o acampamento norueguês acompanhados do piloto MacReady (Kurt Russell) e fazem uma descoberta assustadora. Todos morreram, alguma coisa foi retirada de debaixo de camadas de gelo muito antigas – eles descobrem, mais tarde, tratar-se de uma nave de origem extraterrestre – e há restos mortais horrendos, parcialmente queimados, no local.

Uma noite, no canil da estação, algo aterrorizante acontece envolvendo o cão resgatado. Rapidamente os cientistas chegam a uma assustadora conclusão: estão lidando com uma forma de vida capaz de imitar outras formas de vida, uma criatura alienígena que pode estar se passando por qualquer um deles, ou mais de um. E quando provocada, a Coisa reage, transformando os corpos humanos em versões bizarras de si mesmos, com apêndices, dentes, pernas aracnídeas…

O Enigma… foi, o primeiro trabalho de John Carpenter para um grande estúdio, no caso a Universal, e fracassou nas bilheterias na época. Bem, estava passando nos cinemas outro filme sobre um alienígena, talvez você tenha ouvido falar, chamado E.T.: O Extraterrestre (1982) de Steven Spielberg. A visão de Carpenter não podia ser mais diferente da Spielberg. Enquanto este fez uma experiência emocional, genuinamente forte, sem ser manipulativa ou piegas – E.T. também é um clássico – Carpenter fez um filme que não deixa um sentimento reconfortante para o espectador. Sua intenção é incomodar mesmo. E conseguiu, talvez até bem demais… Mas o tempo, ah, esse é quem realmente julga a arte.

O que muitos falharam em ver na época é o fato de que, por baixo dos efeitos e da maquiagem bizarra e artística do mago Rob Bottin – sério, o corpo carbonizado no acampamento norueguês não parece uma escultura moderna? – existe uma história muito simples e forte sobre paranoia. “Confiança é algo difícil de se encontrar hoje em dia”, diz o herói MacReady, e ele podia muito bem estar falando da vida em 2017. O horror, no filme, é tanto físico quanto psicológico, quase existencial.

Reclamaram no lançamento que os personagens do filme eram rasos. Ora, a pouca profundidade dos personagens adiciona à tensão. O público fica com a sensação de que tudo pode acontecer e qualquer um pode estar infectado com a Coisa, exceto pelo astro Russell, claro, nosso representante na situação. O fato deles também já começarem o filme nervosos e a ponto de explodir uns com os outros – e são todos homens, até a equipe de produção do longa era eminentemente masculina – aumenta o nosso sentimento de inquietação.

Se a maioria dos personagens da história tem pouca personalidade, de que vale então preservar tanto assim a própria individualidade, a própria humanidade? Essa é a questão no centro do filme e Carpenter, sempre um descrente, não a suaviza para o espectador. Transplantando para o nosso mundo real, a situação é muito básica. Esposas não conhecem seus maridos. Pais não conhecem seus filhos. E vice-versa. Não conhecemos os políticos que elegemos – bem, de alguns dá para se conhecer um pouco. Não podemos esquecer que O Enigma… é um neto da Guerra Fria, uma das épocas da história humana em que a desconfiança mais esteve em alta, pois é uma refilmagem de O Monstro do Ártico (1951), que assustou Carpenter na sua infância e foi produzido por um dos seus ídolos, o produtor-diretor Howard Hawks.

Mas, claro, o tema da desconfiança está presente de forma muito mais intensa no do niilista Carpenter. E ele leva esse tema até o seu limite, quando (AVISO DE SPOILER DE UM FILME DE 35 ANOS) ele termina a história com dois homens à beira do fogo, condenados, e um deles pode muito bem estar infectado pela Coisa, talvez até os dois. Depois de se emocionar com E.T., quem aguentaria um final como este?

Ainda bem que descobrimos que sim, muita gente aguenta. O cinema é como sorvete, para ficar numa metáfora gelada: existe uma infinidade de sabores, cada um para determinado público. E com o tempo O Enigma do Outro Mundo encontrou seu público, hoje é considerado um clássico e influência para muito que veio depois. Não tem a classe de um Alien (1979), por exemplo, e John Carpenter não é um visualista tão formidável quanto Ridley Scott. Mas é um filme mais potente justamente pelos momentos “quase trash”, por ir mais intensamente à jugular, por ter coragem de ir além na sua exploração de um temor básico da humanidade, a incapacidade de se confiar. Ora, a cena do sangue antecipava a paranoia da AIDS, e o medo da infecção, do “outro”, é tão potente hoje quanto naquele começo da década de 1980. Na época em que o planeta esteve sob a ameaça de ser explodido pela bomba, John Carpenter e Kurt Russell nos lembraram de que o fim do mundo começa com dois caras sentados em volta da fogueira, cada um imaginando se o outro irá matá-lo. O fim do mundo começa com a desconfiança.

Então, neste dia 31, apague as luzes, aumente o volume da sua TV, acesse seu Netflix e celebre os 35 anos deste clássico gelado. Tente não pular da cadeira na cena do teste de sangue. E se estiver acompanhado, preste atenção na pessoa ao seu lado. Você a conhece… de verdade?