Quando era criança, um dos meus filmes favoritos era “Space Jam”, aquele com o Michael Jordan e os Looney Tunes. A minha memória diz que foi o primeiro filme que vi no cinema (talvez não tenha sido cronologicamente, mas tornou-se a primeira grande lembrança), lá no Amazonas Shopping, sessão lotada, com várias crianças também tendo suas primeiras descobertas cinematográficas. Foi muito especial, tanto que nunca esqueci.

Não tive TV a cabo na infância, mas lembro de conseguir ver aqui e ali alguns jogos da NBA. Fiquei louco pra conhecer mais do basquete americano por conta do filme, mas como era dificílimo de acompanhar por não ter acesso aos jogos, acabei indo de vez para o futebol como esporte favorito.

Pouco tempo depois veio “Titanic”, e minha ideia de cinema expandiu-se. Aquilo era algo realmente muito diferente. Era um espetáculo, algo gigantesco, com proporções que nem sabia serem possíveis. Tinha também Leonardo DiCaprio e Kate Winslet lindos, novinhos, pegando fogo.

Aquilo parecia ser cinema para mim. Ou, pelo menos, o melhor cinema possível. No mínimo, muito melhor do que outros filmes. E dentre esses outros estavam (na minha cabeça de criança) todos os brasileiros, que sempre me pareceram toscos, grosseiros. Vou completar com o maior clichê de todos, maior que o kit gay, a mamadeira em forma de pênis e a Lei Rouanet: para mim, aquilo era só palavrão e putaria.

E continuou assim por muito tempo. Mudei de ideia apenas quando ingressei na UFAM para cursar jornalismo. Entrei alienado e saí com ideias mais arejadas, compreendendo devagarzinho que o mundo é um lugar realmente muito grande, e que se manter irredutível nas pequenas certezas que formam nossa personalidade consiste, sim, em negar fatos.

Filmes brasileiros estavam num lugar de desconfiança, que só tinha lufadas de alguma consideração quando estes tinham chancela de alguma premiação internacional. Premiação internacional leia-se Oscar, e só.

“Central do Brasil”: último candidato do Brasil ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro

Não à toa, durante muito tempo meus filmes brasileiros favoritos eram “Central do Brasil” e “Cidade de Deus”. Ainda gosto muito dos dois, acho que resistiram bem ao tempo. Mas, com certeza, esse reconhecimento da premiação americana interferiu no meu inconsciente. É a mesma premiação que consagrou “Titanic” com 11 prêmios, logo ver estes filmes alcançando destaque neste lugar, soava como uma prova irrefutável da qualidade da produção brasileira, que ela poderia se aproximar do melhor cinema.

Com o tempo fui vendo que o cinema brasileiro possui vários filmes mais poderosos que Central e Cidade. E que essa verdadeira obsessão em obter reconhecimento do mercado cinematográfico americano é o tipo de coisa que diz muito sobre a nossa maneira de se relacionar com arte, e as características que nos tornam brasileiros. Do quanto fomos influenciados por uma oferta cultural estrangeira enfiada goela abaixo que faz com que o natural seja eu achar que os conflitos, rostos e histórias mostradas nos filmes numa realidade totalmente diferente da minha façam mais sentido, provoquem mais pertencimento, do que num filme produzido no meu próprio país, e/ou cidade.

O estranhamento que sentia ao ver filmes como “Amarelo Manga”, “A Festa da Menina Morta”, “O Céu de Suely”, “Estômago” (títulos que hoje em dia revisito mais do que Central e Cidade) estava ligado a uma ideia restrita de cinema que tinha. Uma ideia do cinema americano dublado, do cinema espetáculo, blockbuster e comédias românticas. Comparar as duas coisas parecia ridículo: era óbvio que o brasileiro parecia inferior por uma espécie de vulgaridade nos temas, na abordagem, no linguajar, na maneira que filma os corpos.


“A Festa da Menina Morta”: drama dirigido por Matheus Nachtergaele rodado em Barcelos, no interior do Amazonas

Mas é evidente que essa “sujeira” só incomoda quando confrontada com a estética limpa dominante.

A arte tem diferentes finalidades. Pode entreter e também ser muito mais que apenas isso. Se apenas ofertas de entretenimento nos chegam, é natural termos dificuldade de se interessar por filmes com outras intenções. Não apenas intenções, mas outros rostos, geografias, sotaques e estéticas.

Não fiquei interessado em basquete, não estava a fim de ver um jogo acontecendo numa quadra próxima a mim. Queria ver o Michael Jordan, ver um jogo da NBA, não de outra liga.

Muita gente ainda vai ao cinema ou vê em casa nas diversas plataformas que existem, filmes que são versões repaginadas do “Space Jam” e do “Titanic” – há  outros, claro, mas cito estes apenas pra aproximar de uma referência pessoal. E buscar isso é garantia de que vai encontrar, pois é o mercado que determina, e há oferta e público consumidor. Esse tipo de cinema nunca vai acabar, apenas se fortalece com o tempo. Troque Jam pelas animações lançadas todo final de semana, e Titanic pelos filmes da Marvel, DC, ou as aventuras com o The Rock, etc., e temos a mesma proposta artística sendo exibida desde sempre ininterruptamente.

Existe um verdadeiro universo de filmes que vão para outro caminho. Mas para que lugar esses trabalhos são jogados? Por mais que eles não tenham, de modo geral, uma relação próxima com a massa, isso significa que devem ser colocados de lado, sem nenhum cuidado para que este tipo de proposta seja preservada?

No fim de novembro, a 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região suspendeu o limite de salas que um mesmo filme em cartaz pode ocupar, indo contra a cota de tela suplementar implementada em 2015, que limitava um filme a ocupar no máximo 30% das salas de um complexo. Ou seja, cabe ao dono do cinema definir a divisão de salas que cada filme deve ter. O novo “Vingadores: Ultimato”, que certamente vai ser um lançamento gigantesco, pode ocupar todas as salas, dependendo do “bom senso” do administrador que, na esmagadora maioria das vezes, nem cinema assiste.

A ligação mercado x arte é bem complexa, sem dúvida. Mas é interessante como, dependendo do caso, ela escancara a viciada relação de consumo envolvida na questão. Na decisão do TRF, o relator e desembargador Johnson di Salvo afirmou que a qualidade da produção brasileira é “bastante irregular”.

Não sei até que ponto vai a cinefilia do senhor di Salvo. Se ele assiste aos filmes brasileiros premiados em relevantes festivais do mundo, se investiga o cinema nordestino, o cinema mineiro, que diretores brasileiros ele mais acompanha, etc. Posso especular que essa ideia de produção “irregular” está ligada aos resultados nas bilheterias, e ao quanto estes filmes são diferentes de um cinema reconhecível como sendo de “bom gosto”.

“Vingadores: Ultimato”: estreia do filme deve ocupar grande parte dos cinemas brasileiros após decisão judicial

É muito clara a ameaça que uma decisão como essa gera. A cota de telas determina que um determinado percentual de dias tenha garantida a exibição de títulos brasileiros. Se esses filmes forem sistematicamente sufocados pelos arrasa-quarteirões, eles vão minguar até desaparecer. Me assusta o quanto as pessoas pensam que as coisas não podem acabar, que se pode tirar direitos conquistados como se isso não colocasse toda uma cadeia em risco. Não, acaba sim, e estamos caminhando em direção a isso.

Por mais que tal assunto gere pouco interesse se formos pegar em números massivos, é importante saber que todos perdem com menos variedade na oferta. Isso também é mercado e dinheiro. Centralizar tudo em poucos filmes é uma ideia financeiramente ruim, é pensar pequeno, apenas no imediato, num público imutável.

A fala do desembargador é sintomática ao refletir o brasileiro médio, que caminha cada vez mais para o orgulho de ser ignorante, tendo a cultura e informação como inimigos. Cota de telas acontece em praticamente todos os países desenvolvidos, pois eles entendem que um cinema nacional forte é sinônimo também de dinheiro, negócios, emprego, além de ser uma poderosa ferramenta nas relações internacionais.

Nem se trata de nicho de filme de arte, experimental, etc.. Estamos falando do cinema brasileiro que tem sim intenção em dialogar com grandes públicos, mas que é prejudicado por uma máquina travada, que dava sinal de melhoras, mas que, no momento, retrocede velozmente.

A nossa sorte é que as novas tecnologias facilitaram o processo de gravação dos filmes, e muita gente se qualificou nas últimas décadas, passou por intercâmbios com profissionais de outros países, realizando filmes relevantes, que pavimentaram o caminho. É só uma pena esse sentimento de eterno recomeço, de recorrente plantio.

Só torço sinceramente para que esse retrocesso não traga marcas profundas demais. Que a relação realizador x público ainda seja possível de ser restabelecida. E que sejamos capazes de ainda, apesar de tudo, perdoar vocês.