AVISO: Esta matéria conterá SPOILERS de Fragmentado. Recomenda-se ler apenas após assistir ao filme.

Ele fez de novo: No seu novo filme, Fragmentado, que já é um dos sucessos de bilheteria em 2017, o diretor, roteirista e produtor M. Night Shyamalan voltou a fazer uso do “plot twist”, aquela reviravolta de roteiro no final da história, característica pela qual ele ficou conhecido desde o já clássico desfecho de O Sexto Sentido (1999).

A diferença agora é que o “plot twist” não é tanto sobre a história vista ao longo de Fragmentado, mas como ela se conecta com outro longa do cineasta: Corpo Fechado (2000), o filme que ele dirigiu e roteirizou logo após a explosão de O Sexto Sentido. Neste artigo, vou discutir essa conexão (claro) e a própria carreira de Shyamalan. Pessoalmente, preciso deixar claro que gostei de Fragmentado: para mim, é um suspense criativo, muito eficiente e que me deixou tenso nos momentos finais, apoiado pelas ótimas interpretações de James McAvoy e Anya Taylor-Joy. Porém, ainda não estou convencido de que a ligação que Shyamalan faz com seu filme de 17 anos atrás é algo positivo. Vou tentar expor minha visão com este texto, vocês podem opinar nos comentários.

Já demos um aviso de SPOILER lá no começo, mas não custa repetir, né, leitores? A partir de agora, vou discutir o final do filme, então se você ainda não o assistiu, pegue a deixa do Mark Wahlberg confuso e volte depois.

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O Shyamalanverso: Filadélfia

Shyamalan é daqueles diretores que adora colocar referências de outros filmes no seu novo trabalho. Seus filmes se passam na Filadélfia, ou pelo menos no Estado da Pennsylvania no caso de Sinais (2002) – bem, menos os projetos de aluguel O Último Mestre do Ar (2010) e Depois da Terra (2013) – e o cineasta sempre coloca uma ou outra dica visual. Por exemplo, a rua abaixo lembra muito a ambientação de O Sexto Sentido, e o visual do flashback na floresta com a jovem Casey lembra A Vila (2004).

Rua Fragmentado 700x350

Rua familiar?

floresta Fragmentado 700x350

Além disso, a atriz Betty Buckley, a psiquiatra de Fragmentado, já atuou num filme de Shyamalan, Fim dos Tempos (2008) – no entanto, não é a mesma personagem. E como quase sempre, o próprio diretor faz uma ponta, agora como um cinegrafista admirador do restaurante Hooters, e a piadinha com ele se refere ao lugar onde as garçonetes trabalham de shortinhos e blusas justas.

Mas a conexão real vem mesmo nos últimos minutos do filme, quando começamos a ouvir uma trilha sonora familiar, deixamos a “Fera” – a nova e feroz personalidade de Kevin (McAvoy) – e vamos para um restaurante, onde os clientes estão vendo na TV uma reportagem sobre Casey e seu sequestro por Kevin. Alguém pergunta: “Já não tivemos um maníaco estranho como esse há alguns anos? Como era o nome dele?” e Bruce Willis (sim, ele mesmo) aparece respondendo “Era o Senhor Vidro”, remetendo à trama de Corpo Fechado.

Aliás, a própria aparição de Willis serve como uma reviravolta dentro da reviravolta, pois fazia alguns anos que não o víamos numa tela de cinema, não é? Foram tantos filmes direto para o DVD… Parecia que eu estava vendo um fantasma!

E é isso. A reviravolta do final de Fragmentado é que ele se passa no mesmo universo de Corpo Fechado. A história que estávamos vendo não passou de uma prequel para o vindouro Corpo Fechado 2, que Shyamalan vivia prometendo desde o lançamento do primeiro.


Vilões e heróis de histórias em quadrinhos

Depois do choque, a reflexão: Essa ligação funciona? Em minha opinião, sim e não.

Sim, porque em primeiro lugar o cineasta tem o direito de fazer o que quiser com suas obras. E depois, porque dentro de ambos os filmes notamos traços narrativos em comum. Tanto Corpo Fechado quanto Fragmentado são sobre personagens descobrindo algo sobre eles mesmos, ultrapassando um limite interior, e chegando a novas realidades. Em Fragmentado, a psiquiatra abre a porta do “sobrenatural” quando menciona as capacidades de Kevin. Essa noção da proximidade entre o racional e o fantasioso também se percebe em Corpo Fechado, que tenta fornecer um embasamento plausível às fantasias de super-heróis e vilões das histórias em quadrinhos lidas por Elijah (Samuel L. Jackson). E Kevin tem tanto em comum com Elijah – ambos à margem da sociedade, e malucos – quanto com David Dunn (Willis), que descobria sua verdadeira força interior ao longo daquela história. De fato, se Corpo Fechado era a história do nascimento de um super-herói, Fragmentado em retrospecto parece ser a história do nascimento de um super-vilão.

Mas por que eu também acho que não funciona? Porque não dá para se confiar em Shyamalan. Depois de tantos filmes problemáticos comandados pelo seu ego, como A Dama na Água (2006) e Fim dos Tempos – conceitos ridículos que o diretor levou a sério, embevecido pela imprensa que o chamava de “o novo Spielberg” ou “o novo Hitchcock” – agora vem mais uma prova de ego. É preciso ser meio inflado para querer fazer o seu próprio “universo cinematográfico”, a ideia dominante em Hollywood desde o sucesso do Marvel Studios. Shyamalan agora quer dar uma de “Marvel de um homem só”, e no processo barateia seu próprio filme, reduzindo Fragmentado a uma prévia de seu próximo trabalho, e seu interessante personagem esquizofrênico, ao vilão, o “cara malvado”, desse mesmo filme vindouro.

E essa ligação não deixa de revelar uma boa dose de presunção, não é mesmo? Afinal, Corpo Fechado virou cultuado e reverenciado, mas na época as pessoas não apreciaram tanto. Muita gente saiu da sala coçando a cabeça, pois os conceitos relativos a super-heróis com os quais Shyamalan brincava só se tornaram mais compreensíveis para o grande público frequentador de cinema após quase duas décadas de exposição aos filmes com os personagens Marvel e DC. Será que Corpo Fechado é assim tão lembrado pelo povão, ficou tão marcante na memória? O Sexto Sentido e Sinais, sim… Será que o mesmo se pode dizer de Corpo Fechado?

De novo retornamos a aquele ponto de antes: Shyamalan parece estar voltando à boa fase – repito, gostei bastante de Fragmentado – mas as mesmas tendências que fizeram sua carreira descarrilar em meados da década passada ainda são percebidas nele. Ainda não dá para se confiar nele. E ainda temos outra noção preocupante: Geralmente, continuações tardias não rendem filmes de qualidade…

Elijah disse: “Estamos conectados…”.

Já pensaram se a moda pega? Eu queria ver os irmãos Coen fazendo um “buddy movie” com o Dude e a Marge Gunderson formando uma parceria para caçar o Anton Chiguhr. Ou o Michael Mann fazendo um Fogo Contra Fogo 2 colocando o tira de Al Pacino contra o bandido de James Caan de Profissão Ladrão (1981). Será que futuros projetos do Shyamalanverso trarão de volta também o Cole de O Sexto Sentido, o professor Marky Mark de Fim dos Tempos e as crianças de A Visita (2015)? E o crítico de cinema de A Dama na Água? Ah, esse não vai dar. Mas os scrunts podem reaparecer, o céu é o limite.

Uma coisa é certa: M. Night Shyamalan não para de nos surpreender.