Muitos cineastas mais antigos, formados pela tela grande das salas de cinema, veem com maus olhos a ascensão da Netflix. Para esses nomes, que incluem até Steven Spielberg, defensor eloquente da tecnologia como forma de ampliar a experiência cinematográfica (e, ironicamente, um dos primeiros diretores célebres a descobrir o cinema através da televisão), o cinema limitado à modesta (mas nem sempre) TV da sala nega uma característica fundamental dessa arte: a experiência coletiva, quase religiosa, de se vivenciar uma obra audiovisual no espaço amplo e imersivo de uma sala escura.
Esse é um lado da querela, mas não é o único, e certamente não o único para Spielberg: há ainda o modelo de negócios da empresa americana, o famigerado algoritmo, as suas investidas predatórias sobre outros mercados, os índices não divulgados e não auditados de audiência, etc. São tópicos bastante controversos, e a Netflix terá de responder por eles no futuro. Mas queria usar esse texto pra lembrar que há, também, um outro tipo de cinema, mais modesto na escala, mais voltado, justamente, à intimidade de uma televisão na sala ou no quarto, e que pode ter um abrigo precioso na plataforma.
São filmes sem correria, sobressaltos ou sequências épicas, com um ritmo tranquilo, mais parecido com a vida de todos nós. Filmes, também, em que a principal atração são os diálogos bem escritos, e o prazer de assisti-los na voz de atores e atrizes inspirados. O grande Woody Allen costumava ser um mestre nesse tipo de material, e Richard Linklater fez seus melhores trabalhos pondo o elenco apenas pra bater papo, como acontece em Slacker, Jovens, Loucos e Rebeldes e Antes do Amanhecer. É um tipo de cinema que se ajusta muito bem ao streaming pela TV, e que ganhou um exemplar na Netflix que é um pequeno tesouro: a série Faz de Conta que NY é uma Cidade, do veterano Martin Scorsese.
DOROTHY PARKER CONTEMPORÂNEA
Toda essa introdução foi pra falar sobre o enorme prazer de acompanhar, na tela, a conversa inteligente e estimulante entre Scorsese e a mulher que é o tema da série, a escritora nova-iorquina Fran Lebowitz. Um formato tão simples, mas que que funciona às maravilhas: Scorsese coloca um assunto na mesa, e Lebowitz levanta voo em suas digressões sobre literatura, dinheiro, festas, viagens e as demais coisas sob o sol. O fio condutor dessas reflexões é o amor, do diretor e da autora, pela cidade de Nova York, e também por algo mais: a já declinante arte de sair à rua, de bater perna, de encontrar os amigos e a fauna sortida das cidades, de frequentar bares e restaurantes, ir a concertos, visitar livrarias e antiquários; olhar, enfim, a paisagem urbana com afeto e humanidade. À luz da pandemia da Covid-19, que deitou sua sombra pouco depois do fim das filmagens, e que tornou o ato de sair à rua um perigo, o que era para ser uma ode a uma grande cidade ganhou a aparência de uma elegia.
São sete episódios curtos, de 25 a 30 minutos, onde Fran fala sobre um tema geral (cultura, o trânsito), e seus comentários são intercalados por imagens de NY e de figuras emblemáticas para a geração da escritora e de Scorsese. Fran fala, e fala – e tudo o que essa senhora mordaz tem a dizer sobre qualquer assunto vale cada segundo investido.
Uma total desconhecida fora dos EUA, Fran Lebowitz surgiu para cenário de Nova York aos 21 anos, quando começou a escrever para jornais e revistas e se ligou a nomes célebres daquela cidade, como o jazzista Charles Mingus, o artista plástico Andy Warhol e o fotógrafo Robert Mapplethorpe. Independente, culta, afiada e abertamente gay, Fran é uma é herdeira da melhor tradição de sofisticação e wit da cidade que elegeu como lar – o jornal New York Times a definiu como uma Dorothy Parker contemporânea –, mas sua produção esparsa – duas coletâneas de ensaios e um livro infantil, culpa de um bloqueio criativo que a paralisa há três décadas, impedindo a conclusão um prometido romance – a fez ser muito mais reconhecida por suas aparições na televisão, como entrevistada regular em talk shows, e como conversadora profissional, paga para realizar animados encontros com admiradores, que viram um bate-bola de observações ferinas sobre qualquer tema.
CINEMA ÍNTIMO E CONVERSACIONAL
Tive a sorte de conhecer e me interessar por Lebowitz antes da série da Netflix – há vários anos, por um desses acasos felizes, a TV a cabo da minha casa estava com o sinal aberto para os canais de filmes, e, ao me deparar com outro documentário sobre ela (Public Speaking, 2010, também do amigo e fã Scorsese), não consegui fazer qualquer outra coisa até terminar a obra, o que me custou uma aula na faculdade. Ficam aqui as desculpas ao professor ou professora da ocasião. Aliás, esse primeiro filme ficou um bom tempo nas mãos de Wes Anderson (Os Excêntricos Tenenbaums, Moonrise Kingdom, O Grande Hotel Budapeste), outro admirador de Fran, mas Scorsese levou o páreo.
Faz de Conta já está na praça desde janeiro desse ano, e não vou negar que possivelmente terá sido a experiência cinematográfica mais prazerosa (não falei a melhor, embora esteja bem perto) com a qual vou me deparar esse ano. Tudo isso soa muito benigno – é fácil expressar o amor à cidade sendo uma pessoa com uma vida confortável, longe dos problemas de quem sofre para pagar as contas no fim do mês, quando não está acossada pela miséria e a violência tão tragicamente corriqueiras que nos cercam –, mas o senso de amor à comunidade, a expressão de admiração mútua entre os dois protagonistas e a absoluta devoção a uma boa prosa são o que ficam de Faz de Conta que NY é uma Cidade, e que fazem a delícia desse tipo de cinema íntimo e, pra usar uma palavra pomposa, conversacional. Ou, já que estamos no embalo, e pra fazer uma analogia com a música clássica, um cinema que não é como a sinfonia, com sua orquestra densa e seus sons vastos, monumentais, mas mais como a música de câmara: uma conversa inteligente e despretensiosa, entre poucos e maravilhosos músicos. Espero que mais trabalhos assim cheguem à Netflix, e encontrem público por lá.