Harmonia dos contrastes (Ivens Lima, 1966)

Harmonia dos contrastes, de Ivens Lima, é um filme que apresenta uma espécie de crônica social através da encenação de diversas situações em que se destacam as mãos. Tipicamente uma experiência de primeiro filme, vai mostrando, geralmente por oposição, diferentes condições sociais e culturais, com situações de trabalho, de lazer e de consumo, além de mostrar certas instituições de influência na sociedade, como a igreja, a política e os meios de comunicação, sempre através do trabalho com as mãos. Com a presença de alguns intertítulos, o filme faz alusão a situações históricas como “As mãos de Van Gogh”, com referência ao sofrimento do artista; ou “As mãos dos Cesares romanos”, relativo ao poder dos imperadores romanos sobre a vida dos gladiadores, expresso através do sinal para matar ou não o lutador derrotado em uma disputa e “As mãos do diabo”, com referências ao holocausto judeu da Segunda Guerra Mundial. As situações representadas oferecem pouco ou quase nada do contexto da cidade de Manaus, remetem a situações universais típicas de uma sociedade dividida em classes resultantes de um modelo de produção que concentra renda e gera desigualdade social.

Carniça (Normandy Litaiff, 1966)

É um filme que apresenta a faceta mais carente da cidade de Manaus naquela época. Da população que convive diariamente com o lixo, os dejetos e a carniça do título. Temos urubus disputando os restos mortais de peixes e senhoras catando no lixo algo que se possa aproveitar. À partir do antigo matadouro de bois da cidade de Manaus, o filme vai percorrendo diversos espaços, como o mercado municipal e feiras, revelando os hábitos alimentares e de consumo que estão relacionados com os escombros e com o marginal da sociedade. Para Narciso Lobo, (A tônica da desconinuidade, 1994, p. 137) era o “flagrante do cotidiano que fala a muitas pessoas, a todas as pessoas: o lixo. A busca estética do lixo como documento e como arte. Denúncia e fruição”. Em diversos momentos o filme apresenta closes de pessoas, revelando a faceta dessa população anônima que está marginalizada do consumo e do trabalho digno. Com um interesse etnográfico, o filme faz um registro dos hábitos culturais do povo carente da cidade de Manaus, sendo um contraponto crítico em um momento pleno de entusiasmo com a implantação eminente da Zona Franca de Manaus. Litaiff rompe com outros filmes do período que tinham uma estrutura mais poética ou lírica, ou mesmo uma estética mais “experimental”. Apresenta um filme ligado na realidade, sem concessões. Na aspereza das imagens em P&B estão impressas as fissuras de uma cidade.

Um pintor amazonense (Roberto Kahané, Felipe Lindoso e Raimundo Feitosa, 1965)

Dos filmes premiados no Festival este é o tecnicamente mais bem realizado, pois foi filmado em 8mm colorido e com som ótico. Apesar da bitola menor, uma vez que a maioria dos trabalhos do festival havia sido filmada em 16mm, Um pintor amazonense tinha a grande vantagem das cores e do som, elementos expressivos que oferecem a percepção de uma experiência cinematográfica mais completa. A cópia que está disponível do filme foi reeditada pelo diretor Roberto Kahané em 2012 e teve acrescentadas algumas legendas que situam o espectador em relação ao ambiente mostrado ou que indicam quem é o personagem em quadro. Além disso, toda a locução ou falas também foram legendadas, pois infelizmente o áudio original dos depoimentos está muito comprometido e praticamente não se entende o que é falado, problemas típicos da deteriorização do áudio ótico da bitola de 8mm. Na reedição também foi inserido um background instrumental do início ao fim do filme.

O filme apresenta um retrato do jovem pintor Hahnemann Bacelar, então com 17 anos de idade e pelo que podemos ver, os quadros mais importantes e expressivos de sua carreira já estavam prontos naquela altura, como éo caso do famoso quadro Cafuné. No filme há duas situações distintas no uso da voz: inicialmente uma locução lida pelo poeta Farias de Carvalho, que tem um caráter um tanto romantizado, enfatizando um certo fatalismo presente na vida do artista sofrido e marginal, sublinhando os elementos de entrega ao fazer artístico em condições precárias de subsistência. Logo em seguida temos alguns depoimentos tomados diretamente em cena, mas que não são sincrônicos com a câmera. São entrevistados o próprio Hahnemann, sua mãe, e o artista plástico Álvaro Páscoa, considerado pelo jovem pintor como uma espécie de mentor intelectual, como o filme faz questão de frisar. O ponto alto do filme, e algo que faz dele um documento inestimável, são as imagens dos personagens apresentados. Além de assistirmos a um depoimento do poeta Farias de Carvalho sobre o jovem pintor amazonense, temos imagens de Hahnemann Bacelar passeando com seus quadros e em ação no seu ateliê pintando uma das telas – talvez as únicas imagens de pintor em movimento. Ao final, alguns dos quadros de Hahnemann são mostrados em detalhe, rendendo belas imagens para compor um breve retrato do artista e sua obra. Apesar da precariedade da cópia que ainda resta, este é um documentário muito importante para a memória das artes visuais no Amazonas.