Ingmar Bergman ficou notoriamente conhecido por examinar sua relação com Deus e tais implicações nos seus filmes, graças à trabalhos como “O Sétimo Selo” e as obras que compõe a Trilogia do Silêncio – para alguns trilogia da fé, o diretor sempre buscou explorar suas dúvidas de forma racional. De início, Bergman vendeu os longas como diferentes estágios de um mesmo problema. Para o diretor, enquanto “Através de um Espelho” representava a conquista da certeza, “Luz do Inverno” era um passo até ela, e “O Silêncio” seria confirmação negativa do silêncio divino. Renunciado a nomenclatura posteriormente, o cineasta renegou consonância artística entre os trabalhos. Segundo o sueco, “Através de um Espelho” pertencia a outra fase, moldada em um antigo padrão não parte daquele ciclo. Ainda assim, é impossível negar a ligação entre as três obras. Construindo a partir do universo pessoal de questionamento do diretor, a Trilogia é mais uma manifestação da incessante busca subjetiva por entendimento travada pelo cineasta.


Através de um Espelho (
1961)

Inaugurando a tríade, o mais otimista da trilogia – nos termos de Bergman, acompanha o drama de Karin (Harriet Andersson), recém liberada da clínica psiquiátrica depois de um ataque esquizofrênico, ao lado do marido Martin (Max von Sydow), o irmão Minus (Lars Passgård) e o distante pai David (Björnstrand), a família sofre com as crises da mulher cada vez mais intensas. Definido pelo cineasta como “sentimental, romântico demais”, Bergman conta que o filme se tratava de uma vontade desesperada de apresentar a simples noção de: “Deus é Amor e o Amor é Deus”. Na acepção do diretor, aquele rodeado por amor, também estaria cercado por Deus. Nessa perspectiva, é colocada uma solução emocional para o silêncio atormentador. O relacionamento entre o pai e os filhos segue esse enfrentamento. David é ausente na vida dos dois, mantém uma barreira invisível de comunicação entre eles, principalmente com o jovem Minus, quem constantemente busca respostas para a reticência do Pai. Na cena final, o garoto encerra o filme com a frase: “Papai falou comigo”. Para além do literal, a fala constitui a resposta do próprio Deus. O tão necessário entendimento entre pai e filho, a recepção do amor entre eles representa a presença divina naquele meio. De outro lado, Karin dotada de audição aguçada, já vivia no mundo próximo a Ele. Oscilando entre o real e o irreal, ela finalmente se liberta para o impalpável quando cede aos impulsos da doença.


Luz de Inverno (1963)

Talvez o mais acessível da trilogia no aspecto narrativo. “Luz de Inverno” acompanha o pastor Tomas Ericsson (Gunnar Björnstrand), dirigente de uma pequena congregação, atormentado por uma crise de fé, o homem enfrenta a dúvida da existência de Deus. Entre as tentativas de falar com o Senhor, a relação agressiva com a professora Märta (Ingrid Thulin), o clérigo lida, ainda, com o suicídio de um congregado. O filme, intimamente ligado à Sinfonia dos Salmos de Stravinsky, transita entre os aposentos da pequena igreja e longos monólogos em close-up na tentativa de Ericsson alcançar a resolução para seu questionamento. Bergman não poupa a clareza nos diálogos, sem o uso de alegorias como em “O Sétimo Selo” ou cunho moral de “A Fonte da Donzela”, o pastor perpassa a angustia sem subestimar sua natureza. Ainda sem superar a morte da esposa, ele trata com desprezo o amor dedicado de Märta, quem zela por ele mesmo sem fé. Ironicamente, um servo de Deus perdido na amargura, incapaz de amar outra pessoa. Aplicando alguma dose da filosofia por trás de “Através de um Espelho”, a impossibilidade de Tomas em amar novamente, reflete como a resistência dele ao silêncio divino.


O Silêncio (1963)

Último longa da trilogia, “O Silêncio” causou enorme polêmica no seu lançamento na Suécia. De reiteradas análises publicadas durante semanas, até discussões em parlamento sobre o conteúdo da obra, o filme gerou comoção na crítica especializada. Inspirado no Concerto para Orquestra de Béla Bartók, a ideia original de Bergman era realizar um filme que obedecesse às leis da música, conduzido por associação e ritmo. Nesse sentido, enquanto “Luz de Inverno” é tematicamente mais próximo do que a literalidade da trilogia propõe, “O Silêncio” é esteticamente A trilogia, além de, possivelmente, ser o que melhor manifesta sua intenção. Viajando para uma cidade fictícia, as irmãs Ester (Thulin) e Anna (Gunnel Lindblom), acompanhadas do pequeno Johan, se hospedam em um suntuoso hotel. Incapazes de manter alguma comunicação entre elas e com aquele lugar, as duas solidificam cada vez mais a barreira entre elas. Quase desprovido de diálogos, o longa internaliza o silêncio proposto por Bergman na cadência das imagens. Diferente dos filmes anteriores marcados pela dúvida, onde a ausência de resposta é questionada, “O Silêncio” é o findo resultado desastroso, o completo silêncio, o mundo sem a presença de Deus. Bergman associa com técnica a construção dramática a esse conceito. São relações humanas estabelecidas pela incomunicabilidade, expressadas nas perfeitas sequências de Bergman. Como o diretor bem definiu, é a “impressão negativa”, a humanidade tomada pela absoluta ausência, não mais pela dúvida.

No entanto, mesmo inquestionavelmente baseado na concepção religiosa da dúvida, a dificuldade de compreender os mistérios do transcendente, a trilogia compreende também o conceito de silêncio como a falta de significado da vida. Ou a vida com significado nela mesmo. Isto é, ausência de voz da existência em si. Todos os personagens lutam contra a falta de significado, motivação para continuar vivendo, ao mesmo tempo em que há o medo feroz da morte. Bergman parece se perguntar até que ponto é necessário alguma razão. Seja ela no mundo irreal de Karin, na espiritualidade de Tomas ou na rotina “desvairada” de Anna. Impossível saber com certeza, ainda que o diretor tenha recusado a classificação para os filmes posteriormente, as obras unem forças no mesmo sentido. Elevado pela performance excepcional dos atores e a fotografia afiada de Sven Nykvist, a Trilogia do Silêncio mostra um Bergman cada vez mais aberto para seu público, constituindo um verdadeiro exercício de compreensão do seu criador.