Logo após o lançamento do trabalho divisor de águas da carreira, Ingmar Bergman foi hospitalizado, talvez pelo ritmo frenético de trabalho, onde ficou internado em tratamento por quase dois meses. Foi nesse período que o diretor escreveu o roteiro de um dos seus filmes mais pessoais e célebres, “Morangos Silvestres”. Roteirizado, produzido e lançado em velocidade impressionante, o longa-metragem estrelado pelo gigante Victor Sjöström coroa definitivamente o status conquistado com “O Sétimo Selo”, consagrando-se como uma de suas obras-máximas. Sucesso absoluto de críticas, o filme ganhou o Urso de Ouro como melhor filme no Festival de Berlim, além de garantir a primeira indicação de Bergman no Oscar, na categoria de melhor roteiro original. O drama onírico é o trabalho de maior sucesso do sueco em relação a prêmios recebidos assim como também em repercussão no meio cinematográfico.

O roteiro repleto de influências literárias, inclusive peças de dramaturgos dirigidos por Bergman no teatro, o road-movie narra a aventura interna do Professor Isak Borg (Victor Sjöström), em razão de uma homenagem dedicada a ele por seus 50 anos de carreira como médico, Borg e sua nora Marianne (Ingrid Thulin) partem de Estocolmo a Lund com objetivo de participar da cerimônia. No caminho, eles cruzam com três jovens, liderados pela espontânea Sara (Bibi Andersson), e um casal em completa crise. Nesse turbilhão, entre sonhos e devaneios o velho Isak revive memórias de infância, além de reavaliar sua trajetória de vida.

No seu livro Imagens, ao falar sobre o filme, Bergman afirmou viver eternamente na sua infância. A declaração explicita muito bem quem era o cineasta – um homem inconsequentemente preso as próprias fantasias – como também o cerne de “Morangos Silvestres”. Para o diretor, a infância é entendida como o único momento na vida humana em que se vive a felicidade pura, antes da morte interna que significa a vida adulta.

As cenas das memórias de Isak comportam uma aura brilhante, percebida no olhar emocionado do professor, em contraste com a atmosfera misteriosa dos momentos de tormento. Nas cenas finais do longa, no leito o velho homem conta que quando se sente triste, volta às memórias de sua infância, a sequência, então, corta para seu eu-presente interagindo com extratos do passado. Exatamente como Bergman afirmava viver.

Inspirado pelas mais variadas fontes, especialmente a literatura sueca, é, contudo, da sua vivência pessoal que o diretor mais extraiu para o filme. A presença de detalhes pessoais é característica dominante nas obras originais do cineast. Nesse sentido, Bergman reproduz em Isak Borg seu próprio pai, Erik Bergman. Como paralelo, a relação entre Isak e o filho Evald Borg (Gunnar Björnstrand) reflete de modo abstrato o relacionamento entre o mestre e seu genitor. Porém, não exatamente definidos como um ou outro, mas dois personagens como unidade. Ainda que muito sobre seu pai, a complexidade desse vínculo como um todo, Isak Borg é essencialmente Ingmar Bergman.

Como uma projeção do próprio destino, o experiente professor é um espelho. A visão do jovem Bergman sobre ele mesmo. Convicção simbolicamente expressa em uma das cenas mais significativas do filme, quando a personagem de Bibi Andersson segura o espelho no qual Borg vê seu reflexo, o de velho homem saturado pela existência. A medida que o professor reavalia suas ações em vida, suas falhas, Bergman manifesta suas reais concepções sobre si mesmo, a perspectiva daquilo que ele será no fim. É possível observar essa representação nas minúcias do protagonista, a atitude metódica, a capacidade de sempre estar perdido em um universo lúdico paralelo a realidade, suas crises internas, e, até mesmo, a culpa constante por uma vida profissional notável em sacrifício pessoal, pontos que expõem o âmago do cineasta. “Morangos Silvestres” funciona como uma premonição do diretor.

Quanto a escolha de Victor Sjöström para o papel do velho professor, Bergman se contradiz. Se o mestre do cinema mudo sueco era uma opção desde o início, não há certeza, mas que sua encarnação no personagem foi essencial para a grandiosidade do filme, disso não resta dúvidas. O diretor nunca escondeu a admiração que sentia por Sjöström. Seu mentor, ele foi um dos primeiros a encaminhar Bergman no cinema. Claramente influenciado por seu antecessor, “Morangos Silvestres”, em particular, guarda absurda influência com a obra-máxima de Victor Sjöström, “A Carruagem Fantasma”, considerado por Ingmar o “filme dos filmes”. O trabalho é referenciado diretamente na sombria sequência do funeral logo no início do filme. Exatamente como o cineasta afirmou posteriormente, Sjöström fez do filme de Bergman algo dele.

Merecidamente reverenciado por quem assiste, “Morangos Silvestres” é uma colcha com retalhos de realidade e imaginação, unidas pelas emoções mais íntimas do seu realizador. Não incomum nas suas obras, Bergman desnuda sua essência sem pudor, ainda que com certo delírio. É expondo o centro da sua persona que ele se torna grande, sem limites ou barreiras. “Morangos Silvestres” define Bergman como somente uma obra-prima poderia fazer.