Dificilmente há algum apreciador de cinema que não reconheça a famosa imagem do Cavaleiro templário em uma partida de xadrez contra a Morte. Essa é, sem dúvida, o frame mais difundido da filmografia de Ingmar Bergman, do filme de maior alcance internacional do diretor. Ponto de partida de muitos cinéfilos, inclusive meu. A cena replicada inúmeras vezes na cultura cinematográfica, revela a maior obra do diretor em nível de repercussão. E, seguindo a cartilha, não há erro, ainda que não seja sua obra máxima, é umas das obras-primas de Bergman e do cinema mundial.

Ingmar Bergman invariavelmente é definido como um mestre existencialista, seu conjunto da obra é sempre determinado por trabalhos que invocam suas angústias e temores.  Contudo, foram suas comédias sobre vida conjugal e adultério, principalmente o sucesso Sorrisos de uma Noite de Amor, as responsáveis por pavimentar o caminho para sua grande virada na carreira – o lançamento de “O Sétimo Selo”.

Antes de ser o homem poderoso que foi do meio para o final da vida artística, Bergman recebeu intensa interferência de produtores nos seus primeiros filmes. Sempre oscilando entre fazer algo mais pessoal para encontrar seu estilo, e obras cuja única pretensão era trazer lucro para as produtoras diante dos constantes fracassos de bilheteria, o drama porta de entrada para sua vasta filmografia foi recusado sumariamente. Só depois da comédia estrelada por Eva Dahlbeck levar para casa um prêmio especial do júri de Cannes, e seguindo o conselho de Bibi Andersson para abandonar o gênero, Bergman conseguiu tirar do papel o roteiro de “O Sétimo Selo”, ainda aqui limitado a um orçamento baixíssimo.

Indiscutivelmente, a trama do inconformado Cavaleiro marca completa reviravolta na carreira do sueco em todos os aspectos – comercial e artístico. Talvez não seja sua primeira obra-prima como muitos entendem (“Monika e o Desejo” veio antes), mas é a partir do sucesso do filme, ovacionado pela crítica internacional, que Bergman finalmente tem a guinada para uma sequência de grandes obras, além de se estabelecer como realizador.

Inspirado pela própria vida, a arte sacra presente nos sermões feitos pelo pai ou a cantata de Carl Orff dos textos de Carmina Burana e, sobretudo, a própria Bíblia. Bergman também extraiu para o filme muito dos seus próprios trabalhos, principalmente suas criações para o teatro, não à toa o longa guarda muitas semelhanças com outras criações. Todos esses elementos formam o trabalho chave do diretor, seu passe definitivo para ajudar a construir a história do cinema.

“Quando o Cordeiro abriu o sétimo selo, houve silêncio no céu por cerca de meia hora.” (Apocalipse 8:1)

Na Suécia medieval, o cavaleiro templário Antonius Block (Max von Sydow) e seu escudeiro Jöns (Gunnar Björnstrand) retornando das Cruzadas, encontram um país devastado pela peste negra. Confrontado pela Morte, o Cavaleiro questiona a existência e Deus e seus medos. Percorrendo o mesmo caminho, uma trupe de atores, Mia (Bibi Andersson) e Jof (Nils Poppe), tentam sair ilesos do lugar assolado por desgraças.

Depois do lançamento de “O Sétimo Selo”, um dos temas do filme – o silêncio de Deus –, passa a ser um ponto recorrente nos seus trabalhos posteriores, excepcionalmente examinado na sua Trilogia do Silêncio. A completa exposição dos seus demônios, “O Sétimo Selo” parece funcionar como uma busca do diretor. Antonius Block retorna das Cruzadas apático, tomado pela desilusão do que vê, porém, particularmente dominado pela necessidade de conhecimento. Como Bergman mesmo, o ponto principal não é entender como a humanidade padece mesmo com um Deus tão benevolente. É o silêncio divino que o atormenta, a necessidade de conhecer, compreender o que está além da percepção humana. Criado em um lar religioso, o cineasta espelha no protagonista sua urgência em questionar a existência de Deus muito mais pelo intelecto. O Cavaleiro a todo custo tenta adiar seu fim não para alcançar a fé indubitável, o que, segundo, ele é um tormento, mas para de alguma forma atingir essa iluminação.

Acima da sua busca pela presença divina, o Cavaleiro é a perfeita alegoria do desespero humano em escapar da morte. O medo da morte de Bergman foi a fonte primária para realização do longa. Atormentado pela ideia do efêmero, “O Sétimo Selo” foi a terapia do diretor para digerir essa apreensão – segundo ele funcionou por um tempo. A trama a todo momento exibe a incapacidade humana de aceitação da morte, do seu próprio fim. O perecimento do outro é visto como parte da existência, mas a sua é recebida com estranheza. Os personagens atormentados incessantemente tentam prolongar a vida, a existência humana como um eterno jogo de xadrez, onde cada movimento é calculado para evitar o inevitável. No seu fim, o cavaleiro Block entende que é impossível ganhar, mas cede à insignificância humana e implora misericórdia divina.

A ambiguidade humana também é discutida na narrativa. A humanidade do homem, ou melhor, a falta dela, ganha contraste de uma doutrina baseada na fraternidade, mas falha miseravelmente na relação com os semelhantes. Esse ponto é mostrado a todo momento no enredo, porém duas cenas de destaque, quando o escudeiro Jöns salva a garota (Gunnel Lindblom) de ser morta, usando um discurso moralista de ser um homem de honra, para logo em seguida pontuar que ela deveria ficar grata por ele não a estuprar. Em outro momento, o saqueador (Bertil Anderberg) afetado pela praga, implora por ajuda ao agonizar até a morte diante de uma plateia imóvel. Bergman revela a essência humana primitiva, para a qual pouco importa o outro diante das próprias mazelas.

Aliás, isso se estende a noção mítica e religiosa da mulher como a gênese da desgraça humana, constantemente provocada no filme. Essa visão é trabalhada em duas personagens, a jovem bruxa (Maud Hansson), instrumento do diabo naquele lugar, a garota é a portadora de todos os males, a causadora da peste, por essa razão é queimada na fogueira. A adúltera Lisa (Inga Gill) é culpada pelo afastamento do marido da moral cristã, além de colocada pelo escudeiro como o mal necessário, ideia constantemente atribuída a figura feminina. Bergman faz questão de ser explícito nos seus diálogos esse pensamento.

“Não há exceção para os atores?”

Carregado de simbologias, o filme usa diversas figuras para criar um conjunto sólido. O diretor contou ter ficado intrigado pela história dos músicos itinerantes que percorreram a Europa na época das pragas e das guerras, levando música aos povoados, elemento esse relacionado aos atores ambulantes do longa. A cena em que a Morte serra a árvore em que o ator se esconde, representa a Árvore da Vida – símbolo de criação e imortalidade – ao matar a árvore, a Morte aniquila toda o conceito. O casal Jof, Mia e o filho Mikael, únicos a “escapar” do destino fatal, e, sem dúvida, os personagens mais virtuosos do filme, intencionalmente remetem à Sagrada Família.

Vale destacar, a fotografia espetacular de Gunnar Fischer, uma das suas parcerias mais significativas, e o elenco afiado são outros fatores responsáveis pela qualidade do filme. No clima sombrio, Max von Sydow expõe a melancolia contemplativa do Cavaleiro, Bibi Andersson e Nils Poppe contrapõem com simpatia perfeitamente dosada nas interpretações. Bengt Ekerot como personificação da Morte é um arrepio. Contudo, é a performance de Gunnar Björnstrand, o duvidoso escudeiro, que arrebata.

“O Sétimo Selo” inaugura o início de uma filmografia formada pelo íntimo do seu criador escancarado ao público, nem sempre completamente real. Fragmentos da personalidade de Bergman são exibidos em cada um dos seus personagens, a constante busca por respostas de Block, o caráter dúbio de Jöns, a abstração do ator, e ainda, o medo voraz do Skat compõem o todo de um artista e as pessoas de sua vida, que fez sua obra a partir do seu universo particular. O espetáculo da miséria humana, a exposição dos seus demônios, a icônica partida de xadrez extrapolam os limites do seu quadro artístico, para fazer pelo cinema como um todo.