Resposta rápida: quantos documentários você conhece que foram um sucesso massivo de público? Quantos documentários você conhece que levaram à redescoberta de uma cena musical – mais, que mudaram o rumo da cultura de um país, ao resgatar talentos há muito abafados, e assim desafiaram a “correção” da história oficial por um regime político?

Todos os questionamentos só levam a uma resposta: Buena Vista Social Club, o clássico dirigido por Wim Wenders em 1999. No ano em que a obra chega à maturidade – e ganha uma sequência dirigida pela americana Lucy Walker, Buena Vista Social Club: Adios, que se detém sobre os desdobramentos daquele primeiro filme –, já é possível olhar para as realizações de Wenders com o necessário distanciamento – e constatar que esses últimos 18 anos não fizeram bem à obra do mestre alemão.

A história de Buena Vista começou em 1996, ano em que o guitarrista americano Ry Cooder, um músico eclético cuja ficha incluía desde colaborações com pesos-pesados do rock (entre eles, Rolling Stones, Neil Young e Eric Clapton) a investigações sobre a música folclórica americana, hindu e até mongol, desembarcou em Cuba para um projeto que juntaria músicos africanos a baluartes da ilha. Como sói acontecer, os vistos dos artistas africanos não saíram, e Cooder, ao lado do produtor britânico Nick Gold, decidiu então sair à cata de artistas da música cubana mais tradicional, o son (um gênero dançante, de origem rural, pai de todos os ritmos que amamos – rumba, salsa, timba –, que mistura os instrumentos de percussão típicos da música caribenha com o tres, uma espécie de viola caipira cubana), que enfrentava à época a maré mais baixa de sua história. Em seu apogeu, nos anos 1940 e 50, o son era a música oficial da aristocracia cubana, a mesma que seria defenestrada do país pela revolução de Fidel Castro e Che Guevara. Embora nunca esquecidos – nomes como Beny Moré e Pérez Prado levariam com sucesso o son aos Estados Unidos, onde ele seria incorporado às amálgamas musicais da rumba e da salsa –, os artistas do gênero veriam os principais clubes fechados e suas oportunidades de trabalho minguarem até a quase extinção.

Os gringos acabaram com bem mais do que a encomenda: conversas com músicos locais levaram à descoberta de talentos do porte de Rubén González, pianista com um inacreditável ataque jazzístico, ou Ibrahim Ferrer, cuja voz de veludo levaria Cooder a apelidá-lo de “Nat ‘King’ Cole de Havana” – ambos solidamente esquecidos –, ao lado de veteranos ainda populares, como os cantores e exímios tresistas Eliades Ochoa e Compay Segundo, todos na casa dos 70 aos 90 (!) anos. Cooder e Gold, com o perdão do trocadilho, farejaram ouro ali – gravado em seis dias, Buena Vista Social Club, o disco (o nome é uma referência a um clube privativo de Havana, que reunia a nata do son pré-Revolução), foi um sucesso surpreendente e avassalador em 1998, deixando o mundo inteiro curioso sobre quem eram aqueles distintos senhores (e senhora – a divina Omara Portuondo é a única integrante feminina da trupe).

Cooder, então, convidou Wenders, para quem havia escrito a grande música de Paris, Texas (1984), para conhecer a história de Segundo, Ferrer e companhia – donde nasceu outro megasucesso, Buena Vista Social Club, o filme. Registrando a bem-sucedida turnê dos músicos pela Europa e os Estados Unidos (numa época, é importante lembrar, em que o embargo econômico gringo ainda estava bem ativo – Cooder foi multado em 25 mil dólares pelo furo), o filme logo se tornaria emblemático pelo humanismo, pelo fascínio de suas histórias de triunfo tardio e, é claro, por sua grande música. BVSC era – e ainda é – um triunfo da arte sobre os imperativos políticos, e um daqueles raros filmes realmente transformadores, que melhoraram a vida de seus retratados e também a nossa, ao nos atiçar para os tesouros da música cubana. Como realização artística, porém, a verdade é que Buena Vista Social Club é bem menos do que poderia ser.

Particularmente, a coisa que mais me irrita no filme é o olhar condescendente, quase paternalista, que Wenders dedica à figura de Ry Cooder. Por toda a projeção, as câmeras do cineasta procuram o rosto de Cooder em meio aos músicos, como se a sua presença fosse um aval, a autoridade americana emprestando segurança e legitimidade ao produto cubano, para encorajamento do consumidor americano e europeu. É o olhar de Cooder que guia a incursão de Wenders pela ilha – não por acaso, os primeiros planos de Buena Vista intercalam tomadas do Malecón, a esplêndida avenida à beira-mar que é um símbolo de Havana, a imagens de Cooder e seu filho, o também músico Joachim, percorrendo as ruas da capital cubana. Nada contra Cooder – sem sua ousadia artística e política, que remete à de Paul Simon nos anos 1980, quando desafiou o apartheid sul-africano para gravar Graceland (1986 – a segregação econômica em 1996 não é uma situação muito melhor), o mundo provavelmente nunca teria ouvido falar de Ochoa, Portuondo e afins. Mas incomoda a ênfase com que Wenders e seus cameramen insistem em tirar o foco dos músicos do Buena Vista para capturar o olhar altivo e satisfeito de Cooder.

O trabalho de câmera em BVSC tem mais problemas. Quase todas as apresentações musicais da obra são filmadas no mesmo esquema, com a câmera circundando os músicos, num loop pouco imaginativo que dura até o fim do número, ou até que a edição corte pro próximo segmento. Dada a riqueza e a intensidade do material musical e dos artistas, e da apropriação criativa de outras linguagens feita por Wenders em outros de seus documentários célebres (especialmente Pina [2011], sobre a coreógrafa Pina Bausch), a monotonia das imagens de apresentações musicais em Buena Vista depõe contra a fabulosa história artística e humana que elas retratam. Também soa incompreensível, para um filme sobre música, que não haja um número musical completo no filme – ou eles são interrompidos pela metade, ou são intercalados com as entrevistas de Wenders e equipe com os protagonistas. É uma limitação que pesa especialmente no final, com a apresentação triunfal do grupo no Carnegie Hall, a casa de espetáculos mais ilustre dos Estados Unidos, onde a entrada emocionante e ovacionada dos músicos logo dá lugar a cenas pitorescas do grupo perambulando pelas ruas de Nova Yok. As dificuldades logísticas por causa do embargo certamente pesaram, mas Buena Vista, dentro de seus óbvios limites, ainda assim desperdiça boa parte de seu potencial como experiência fílmica devido a essas escolhas equivocadas.

Então, Buena Vista Social Club tem vários problemas. Mas é um filme ruim? Certamente que não. Os melhores momentos da obra continuam tão cativantes e eloquentes hoje quanto há dezoito anos atrás. Histórias incríveis, como a de Ibrahim Ferrer, cuja voz fabulosa andava escondida sob a prosaica ocupação de engraxate, ou a de Rubén González, um pianista sensível que antes do filme sequer dispunha de um piano próprio, continuam a comover e reafirmar o triunfo da arte sobre as misérias da vida. Quando o filme deixa os músicos cubanos falarem e tocarem – quando eles ocupam o centro do palco e da tela – a sensação continua tão mágica e profunda quanto sempre foi. E tanto mais agora que a saga do Buena Vista acaba de cumprir seu ciclo – os poucos membros sobreviventes, como Portuondo, Ochoa e o trompetista Manuel “Guajiro” Mirabal, já não se apresentam como tal. O já citado Adios, de Lucy Walker, além de analisar o impacto do filme e do disco na vida dos artistas, serve de epílogo para o documentário musical mais influente das últimas cinco décadas (ou, pra ser mais exato, desde Woodstock: 3 Dias de Paz, Amor e Música [1970], de Michael Wadleigh). Pode não ser um filme perfeito – nem um grande filme, aliás – mas essa é posição de Buena Vista Social Club na história da Sétima Arte.