Rótulos muitas vezes são prejudiciais quando falamos de arte. Geralmente obras que ganham adjetivos superlativos da crítica, com o passar do tempo, já vão criando certa antipatia de boa parte do público, que de certa maneira já vão analisar a obra partindo do pressuposto de, “vamos ver se é realmente tudo o que falam”.

Seguramente esse pode ser o caso de Cidadão Kane que, para muitos, é o maior filme de todos os tempos, a obra cinematográfica mais importante da história, etc.

Será que é mesmo?

Uma das “virtudes” de iniciar a vida cinéfila de maneira tardia é poder ter o primeiro contato com obras essenciais já com o mínimo de maturidade, para que a primeira impressão não seja prejudicada pela imaturidade de quem está assistindo. Assisti a Kane mais ou menos seis anos atrás. Isso significa dizer que era outra pessoa, que não havia ainda adquirido os hábitos de hoje, e portanto não estava preparado para entender o filme.

Ou seja, assisti Kane, pra valer, pela primeira vez esta semana. E, de fato, trata-se de um filme excepcional.

Evidente que olhando com os olhos de hoje, o filme talvez nem aparente ser tão impressionante, mas se nos dermos conta de que ele foi feito em 1941, as coisas mudam de figura.

Bola de cristal em Cidadão Kane

É um filme absolutamente revolucionário para a época, com sua linguagem sofisticada e extremamente inteligente, que definiu uma série de padrões a serem copiados a partir do seu lançamento. As transições de cena, absolutamente elegantes e inovadoras para a época; o uso narrativo da profundidade de campo dos planos; a iluminação como maneira de informar o caráter das situações e dos personagens, ora sombrias e tensas, ora bem iluminadas e acolhedoras (indo para um caminho diferente do que o expressionismo alemão fizera); a narrativa não-linear, que vai e volta no tempo de maneira fluida e bem realizada, algo que ainda não havia sido feito de maneira tão radical; e o excepcional uso da metalinguagem, como no início da projeção, em que vemos um documentário da vida de Kane, que nos adianta muitos acontecimentos da vida do protagonista, para sermos pegos de surpresa mais tarde ao descobrirmos que aquilo estava dentro do filme, e que é aquela equipe que produziu o documentário quem irá conduzir o filme em busca de Rosebud.

Além disso o uso da maquiagem é fantástico, dando coerência aos saltos no tempo que o filme faz, nos apresentando àqueles personagens em variados momentos de suas vidas soando sempre convincente, bem como o uso dos cenários e figurinos, que também cumprem o papel de legitimar a história que está sendo contada, e o fazem de maneira perfeita, o que soa quase como um truque da produção, visto que várias decisões foram tomadas para disfarçar a falta de orçamento que aqui e ali preocupava Welles.

Mas se não bastasse toda essa revolução de linguagem trazida pelo filme, ele ainda nos apresenta a uma história extremamente bem realizada, com personagens interessantes, principalmente o seu protagonista, claro, além de se manter absolutamente atual, visto que as críticas feitas ao jornalismo daquela época podem muito bem ser utilizadas até hoje para se criticar a linha editorial de uma série de grupos comunicacionais que determinam os rumos tomados pela política e sociedade.

E todo o mérito tem que ir para Orson Welles, que escreveu, dirigiu, produziu e protagonizou este longa, com uma inteligência e ousadia que apenas um gênio pode ter. (E vale ressaltar que a coragem do diretor é de se admirar também pelo fato de o filme ser obviamente, apesar de Welles negar, uma crítica ao magnata William Randolph Hearst, dono de uma série de veículos de imprensa nos Estados Unidos, que se utilizavam de sensacionalismo para promover assuntos do interesse do seu dono. Hearst utilizou de todo o seu poder para boicotar e ridicularizar o filme, que devido a isso, foi ter o seu reconhecimento devido apenas vários anos mais tarde).

Cena de Cidadão Kane, de Orson Welles

Sua direção é fenomenal por todas essas escolhas grandiosas, revolucionárias de linguagem, mas também nas coisas menores, pequenas. É o seu trabalho como diretor e ator que constrói a riquíssima, polêmica, controversa figura de Charles Kane, um homem que surge como um idealista no início da sua trajetória no Inquirer, para depois ir tomando gosto pelo poder, e a partir daí tentando manipular todos ao seu redor, para sempre aumentar sua rede de influência, e assim alimentar sua megalomania sem fim.

Seus relacionamentos amorosos, bem como suas amizades vão se afastando de Kane, até que chegue ao seu inevitável final solitário, ressaltado pelo grandioso palácio onde vive, com salas e quartos grandiosos e opulentos, mas sempre com pouquíssimas pessoas.

O fato de toda essa evolução já estar presente em um filme de 1941, e o seu diretor ter apenas 25 anos na época do seu lançamento, são elementos que contribuem para que se estabeleça todo o mito que envolve esta produção. O fato dele ser considerado o melhor filme de todos os tempos por muitos certamente é em virtude de todas essas proezas extraordinárias.

Mas essa questão dele ser ou não o melhor filme de todos os tempos é quase pequena, e pode desviar o foco do fato de que Cidadão Kane é um filme pra sempre, e que ainda não envelheceu nenhum dia desde o seu lançamento.

Pôster de Cidadão Kane, de Orson Welles