Está tudo lá: a ideia de se dirigir diretamente ao público, como numa confissão; o cenário urbano, contemporâneo, de uma grande cidade; a sátira aos ritos e costumes das pessoas cultas e sofisticadas; e, principalmente, a visão, entre lírica e anárquica, do relacionamento entre os sexos. Tudo o que hoje é lugar-comum na comédia romântica adulta (nas melhores, pelo menos) descende diretamente da receita criada por Woody Allen em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, o péssimo título brasileiro para Annie Hall, seu clássico de 1977.

Antes de Noivo…, Allen já era reconhecido como um bom diretor (e principalmente ator) de comédias, mas seus cinco filmes até então eram visões essencialmente convencionais do gênero – o melhor de todos, O Dorminhoco (1973), era uma homenagem assumida à comédia muda, de Chaplin, Keaton e Lloyd. Foi com Annie Hall que Allen reinventou as regras do jogo, deixando sua marca na história do cinema e criando uma mistura de inteligência, neurose, anarquia e lirismo que vários outros filmes tentaram, mas nenhum foi capaz de recriar com a mesma agudeza.

Mas começando pelo começo: Allen surge em cena falando com o espectador, como se fôssemos uma espécie de rabino, ou juiz. Com uma breve e cortante anedota e uma citação de Groucho Marx (“não quero entrar pra nenhum clube que aceite alguém como eu como sócio”), ele resume a sua visão da vida: é complicada, cheia de infelicidade e passa rápido demais.

Hoje em dia, nos acostumamos a dar de barato a ideia do protagonista de um filme “falar” com a plateia, mas, até Allen usar o recurso, ela era anátema no cinema comercial hollywoodiano – e impensável, portanto, numa comédia. Mas, inspirados provavelmente em Rashomon (1950), de Akira Kurosawa, Allen e o corroteirista Marshall Brickman tiveram a sacada de quebrar a quarta parede, a primeira das muitas sandices pelas próximas hora e meia de projeção. Só não os culpe pelo fato de quase toda a comédia romântica desde então, do sublime (Um Lugar Chamado Notting Hill [1997 – sim!!!]) ao banal (500 Dias com Ela [2009]), abusar e fazer desse recurso uma muleta para parecer interessante.

Isso, claro, é o mais evidente. Mas eu gostaria de chamar sua atenção, caro leitor, para o fato de, desde o início, Allen ressaltar a pungência da sua história: a crônica do relacionamento fracassado entre o comediante Alvy Singer e a cantora Annie Hall é cheia de desvarios e risadas – et pour cause, é uma comédia –, mas cuja verdadeira substância é a melancolia e a perplexidade do artista ante a fragilidade das relações amorosas. Essa é uma diferença marcante entre Noivo Neurótico, Noiva Nervosa e suas muitas imitações, ou a comédia romântica em geral: nelas, o conflito existe quase sempre num nível suave, agridoce, apenas para reafirmar, no fim, os sentimentos positivos da plateia. Allen envolve a sua história em dúvidas e tristeza, e mesmo as risadas não são capazes de redimir o relacionamento quebrado entre Alvy e Annie. Num outro monólogo famoso, Singer, resignado, arrisca que as histórias de amor são sempre assim – mas continuamos insistindo, porque precisamos dessas ilhas de felicidade, por mais elusivas que sejam.

Aliás, para um filme tão admirado pelos diálogos e situações cômicas, Noivo Neurótico… mal tem o que se pode chamar de trama. A história de Alvy e Annie anda pra frente e pra trás no tempo, e o único fio condutor são as lembranças e ruminações do protagonista. Por mais celebrado, esse foi outro grande risco assumido por Allen à época – as plateias não estavam acostumadas a tramas não-lineares, especialmente numa comédia. Mas essa é a magia do grande cinema: sequências ousadas, como a do diálogo na fila do cinema (uma das mais queridas do público), em que Alvy interrompe uma discussão sobre o comunicólogo Marshall McLuhan trazendo o próprio para a cena, ou a transição entre animação e live action que acontece quando Alvy, aborrecido, compara Annie à Bruxa Má do desenho Branca de Neve e os Sete Anões (1937) parecem já ter nascido patrimônio comum de todos os fãs de cinema – e continuam servindo de inspiração e de sacadas “ousadas” para filmes como o já citado 500 Dias.

Mas a maior influência de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa sobre seus pares é a maneira como Allen deu forma à comédia urbana, citadina. Partindo dos textos mordazes e maliciosos de precursores como Ernst Lubitsch (Ninotchka) e Billy Wilder (Quanto Mais Quente Melhor), Allen celebrizou as criaturas da metrópole: cultas, cerebrais, inseguras, que falam pelos cotovelos e se movem entre neuroses e idiossincrasias. Com variados níveis de sofisticação, Alvy e Annie são o arquétipo para todos os filmes e séries que tratam desse ser das cidades, desde Seinfeld, Friends e Sex and the City até as grandes comédias da produtora britânica Working Title, passando pelo casal Jesse e Celine, da trilogia Antes do Amanhecer, de Richard Linklater. E esse é provavelmente o grande prazer de se assistir a Noivo Neurótico, Noiva Nervosa hoje em dia: diálogos como os desse filme, para cunhar uma frase original, não se fazem mais. E não é (não de todo) um lamento, mas uma constatação: a profusão de citações eruditas (de McLuhan a Thomas Mann, passando por Balzac, J. Edgar Hoover e Marcel Ophüls) e os longos planos necessários para tamanho prazer verbal não combinam mais com um cinema e um público que priorizam as histórias de ação recheadas de efeitos especiais.

Sinais de um futuro que tornaria inviáveis filmes como Noivo Neurótico…, aliás, começaram a ser sentidos de maneira irreversível no mesmo ano em que este chegou aos cinemas. Afinal, 1977 também foi o ano de Star Wars: Guerra nas Estrelas, de George Lucas, uma obra ainda mais influente que a de Woody Allen, e formidável em seus próprios termos, mas cuja obliteração de um tipo mais íntimo de cinema sempre será pranteada. Como eu disse lá em cima, Annie Hall lançou as bases para toda a moderna comédia romântica no cinema. Mas sua alquimia não se repetiu em mais nenhum outro filme desde então, nem mesmo um de Allen, que logo enveredaria por outros caminhos. Há, sim, boas imitações (Procura-se Amy [1997], de Kevin Smith, ou os mais explícitos Harry e Sally: Feitos um para o Outro [1989], de Rob Reiner, e 2 Dias em Nova York [2012], de Julie Delpy), mas, para achar a comédia romântica adulta e urbana definitiva, fique com este aqui.