“Adeus à Linguagem” é um título que descreve com exatidão o mais recente filme de Jean-Luc Godard. Aos 84 anos de idade, o enfant terrible da Nouvelle Vague francesa, que, desde Acossado (1960), está mais do que acostumado a brincar com a linguagem cinematográfica, continua aqui sua jornada em busca de um cinema cada vez mais radical, abandonando qualquer indício de narrativa clássica ou comum. “Adeus à Linguagem” é exatamente isso: um adeus à forma, adeus ao discurso, adeus a um cinema dito “tradicional”.

Comecemos pela sinopse entregue pelo próprio diretor durante a divulgação do longa, antes de conquistar o Prêmio do Júri no Festival de Cannes: “A ideia é simples. Uma mulher casada conhece um homem solteiro. Eles amam, eles conversam, punhos ao vento. Um cachorro vaga entre a cidade e o campo. As estações passam. O homem e a mulher se encontram novamente. O cachorro se encontra no meio dos dois. Um está no outro. O outro está em um. E eles são três. O ex-marido quebra tudo. Um segundo filme começa. Igual ao primeiro. E ainda não. Da raça humana, passamos à metáfora. Termina em latidos. E o choro de um bebê”.

Pareceu que tem spoilers? Não tem problemas, já que não faz diferença alguma quando se assiste ao longa. Na verdade, a sinopse é uma mera formalidade em “Adeus à Linguagem”, uma vez que o que se vê na tela é um emaranhado quase incompreensível de fragmentos de cenas entrecortados com intervenções tipográficas, ao som de uma narração erudita cheia de referências e ruídos dessincronizados, e eventualmente sob a chancela de um dos dois capítulos: natureza e metáfora.

Ambientes e situações se repetem, mas nunca de maneira linear. Personagens discutem filosofia e política enquanto andam pelados pela casa ou fazem suas necessidades fisiológicas declamando aforismos (“Eis uma imagem de igualdade: o pensamento encontra seu lugar na merda”), enquanto no momento seguinte o cão do próprio Godard é filmado por aí em cores supersaturadas. Imagem digital e de película se misturam. Um barco navega em águas imprecisas. “Adeus à Linguagem” é quase um fluxo de consciência insano com altas doses de dadaísmo, se não fosse a insistência de Godard em se afastar definitivamente de um cinema que ele julga ainda estar “contaminado” pela literatura.

Assim, assistir ao filme da maneira como foi pensado, em 3D, certamente também deve ser uma experiência dolorosa – afinal, já o é vê-lo em sua versão convencional. Godard, que já havia trabalhado com o 3D em seu segmento de 3x3D, aqui se dispõe a explorar a ferramenta em outras direções – mas, graças à programação dos cinemas de Manaus (cof, cof), não foi possível acompanhar os efeitos dessa experiência, e a dor de cabeça ficou só na imaginação mesmo. Seria, no mínimo, inusitado conferir as brincadeiras de Godard com a linguagem nesse sentido.

Se por um lado, “Adeus à Linguagem” continua o projeto de desconstrução cinematográfica de Godard, também deixa no ar uma questão: até onde vai a postura radical do cineasta? É experimentação com propósito ou pura e simplesmente birra com o “cinema comercial”? Por mais instigante que sejam as questões levantadas pelo filme (e são várias, desde o evidente problema da comunicação até política e romance), acompanhar o pouco mais de uma hora de “Adeus à Linguagem” não é tarefa fácil, e às vezes deixa no ar a sensação de que, se não se tratasse de um filme de Godard, poderia muito bem ser um longa experimental feito nos moldes do tutorial de “Como fazer um filme cult e pseudointelectual”. Mas não, é Godard, e Godard tudo pode, porque, mesmo que dê sono, há um conceito por trás, costurando as imagens com peculiaridade e assim criando um caos quase coeso.