“A Voz Suprema do Blues” reúne a mesma trinca de “Um Limite Entre Nós”: Viola Davis de protagonista em um filme produzido por Denzel Washington baseado em uma peça do dramaturgo August Wilson. Além dos nomes envolvidos, o projeto da Netflix guarda as qualidades – um elenco de primeira e diálogos potentes – e defeitos – roteiro deixando pontas soltas pelo caminho e uma teatralização por vezes excessivas – do longa indicado ao Oscar 2017.
Dirigido por George C. Wolfe (“Noites de Tormenta”), “A Voz Suprema do Blues” se passa em 1927 quando a banda da mãe do blues, Ma Rainey (Davis), chega à Chicago para a gravação de um álbum com seus maiores sucessos. Enquanto a estrela faz diversas exigências aos dois produtores brancos desesperados para lucrar com a força das melodias e conseguirem o direito das músicas, o rebelde trompetista Levee (Chadwick Boseman) tenta conseguir se desvencilhar de Ma Rainey para seguir carreira própria, entrando em uma série de debates com os outros musicistas e uma intensa expectativa da concretização do sonho.
Igual em “Um Limite Entre Nós”, o show reside na dupla de protagonistas. Chadwick Boseman descontrói a imagem de firmeza e ponderação do Pantera Negra com a impulsividade e o jeito de falar acelerado de Levee. Consciente do talento acima da média em relação aos demais integrantes da banda, o rapaz consegue compreender o novo ritmo acelerado das grandes cidades e busca adaptar o blues nesta velocidade. Acima de tudo, ele representa uma nova era de jovens negros nascidos nos EUA já no século XX: ambiciosos, inquietos e buscando oportunidades maiores que as alcançadas por seus antepassados. A barreira de uma estrutura dominada por homens brancos, infelizmente, se impõe cruelmente e os dois poderosos monólogos do personagem carregam toda esta angústia quase premonitória e trágica de um caminho sem saída.
Já Viola Davis consegue arrancar uma atuação memorável. A maquiagem de um vermelho intenso nas bochechas e os chamativos dentes metálicos contrastam com o perceptível cansaço no olhar dela de alguém no limite. Afinal, apesar de mandar e desmandar nos produtores durante grande parte de “A Voz Suprema do Blues”, ela, uma mulher negra em um posto de comando em plena década de 1930 no racista EUA do século XX, sabe o quanto aquele poder é ilusório. Desta forma, cabe a Ma Rainey usufruir tudo o que pode e não pode até o momento de ser chutada novamente.
RITMO ACELERADO DEIXA BRECHAS
Mesmo diante de duas figuras tão poderosas, “A Voz Suprema do Blues” não chega a deslanchar totalmente. Se você assistir ao documentário de 30 minutos sobre os bastidores do filme, também disponível na Netflix, percebe-se uma riqueza da pesquisa base para o projeto em relação ao contexto da ida de tantos negros para Chicago, onde se esperava, além do emprego, um racismo menor se comparado ao sentido no Sul dos EUA. Também há importantes questões sobre o próprio setor artístico em que a cultura deles acabou apropriada por empresários e executivos de forma inaceitável para ganhar sucesso mundial com brancos. Curioso como George C. Wolfe e o roteiro de Ruben Santiago-Hudson pouco se aprofundam nestes debates ao dar uma impressão de que parece ser um universo já conhecido de todo público, apresentando isso de maneira muito acelerada na parte inicial e, consequentemente, sem render o impacto desejado na cena final.
Wolfe ainda incorre no mesmo erro de Denzel em “Um Limite Entre Nós” ao adotar a essência teatral, mas, com muitos cortes durante as sequências. Apesar do claro intuito de dar dinamismo ao filme, isso reduz a tensão destes momentos também provocado pela câmera nem sempre enquadrar todos os participantes das discussões em cena, algo palpável nos embates entre os musicistas da banda. Isso impede de vermos uma reação mais visceral de todos eles nos confrontos. O longa ainda apresenta diversos personagens coadjuvantes com grandes potenciais, mas, exceções feitas a Toledo (Glyyn Turman, excelente) com sua canção sobre o negro sempre ser a sobra e a vivacidade de Dussie Mae (Taylour Paige, ótima), todos os demais ficam com pouco tempo para irem além da superfície daquilo apresentado inicialmente.
Sente-se ainda uma brusca mudança feita para dar destaque no personagem de Chadwick Boseman, o que deixa “A Voz Suprema do Blues” com uma grande inconsistência em seu foco principal. Afinal, se Levee teria a mesma importância de Ma Rainey, por que não investir mais no relacionamento explosivo entre os dois com este meio destrutivo dominado por brancos girando como um ponto de convergência entre a dupla? Da forma como ficou na montagem final, a personagem de Viola Davis sai prejudicada pelo pouco de tempo de cena em comparação ao colega, virando uma coadjuvante dentro da própria história, fora a impressão de que há dois filmes paralelos que se encontram em determinados trechos.
Marcado por um cansaço de destinos traçados independente de seus desejos e pela fúria contra esse determinismo simbolicamente representados pelos corpos suados de um calor sufocante, “A Voz Suprema do Blues” consegue, igual ao blues, driblar seus problemas para se tornar uma representação da vida da população negra nos EUA com a potência admirável de Chadwick Boseman e Viola Davis em seus melhores momentos nos cinemas.